Performance de Wagner Abapuru
Texto de Melquisedeque Matos
A performance “Corpo Ajuremado” nasce da disciplina de performance da Prof. Dra. Karine Jansen, no curso de licenciatura em teatro, na escola de teatro e dança da Universidade Federal do Pará. No entanto, principalmente, o processo de criação emerge de uma pulsão latente dentro das reflexões de vida do artista em relação ao seu pertencimento identitário.
O ato poético inicia como ritual de retomada daquilo que foi perdido. Dessa maneira, o performer, dentro da sala 4, abre um lençol com algumas lâminas em cima, seringas, uma tesoura, somado a isso, posiciona três cuia as quais serviram com recipientes para a tintura de jenipapo, a tintura de urucum e, por fim, o sangue do próprio performer. Além disso, dentro da sala, ele utiliza uma bacia com um banho de ervas, colhidas com afetos e incensos para aromatizar. Todos esses dispositivos com o objetivo de produzir ativações sensoriais e acesso às memórias e participação com o ato feito naquele momento.
Wagner se posiciona no meio do seu ritual, sentindo os olhares das pessoas que entram na sala em busca de testemunhar o seu ato. A partir disso, ele agarra as lâminas em cima do lençol, as deslizando pelo corpo, depila cada pêlo em cada membro, pernas, anus, genital, barba, sobrancelha, tudo nas luzes vistas pelo público. A retirada dos cabelos do corpo traz uma desconfiguração da autoimagem, um estranhamento, uma inquietação.
O próximo passo da performance é a retirada do sangue. O artista comenta que a retirada desse sangue foi feita com auxílio de profissionais da saúde, os quais auxiliaram nesse ponto, de forma segura, com esterilização adequada. Porém, o fato é que o sangue ali posto é um ponto-chave de discussão sobre essa memória, corporeidade e do lembrar, o sangue é a potência do viver e, acima de tudo, do resistir. Após a retirada, o sangue é colocado dentro da terceira cuia, o qual torna-se em uma substância fundida em urucum e sangue. Feitura simbólica! O performer se pinta por esse sangue ancestral, de característica que retoma o que se é, em uma brincadeira de se pintar entre o carvão, o jenipapo e o sangue-vermelho. É a retomada. Pode-se perceber que a performance é o ritual do artista com sua identidade em estado lembradiço, ou como diria Schechner (2002, p. 49), “rituais são memórias em ação, codificadas em ações”. Quando o autor comenta sobre essas ações, ele dialoga com ações que restauram aquilo que foi; no caso do corpo-ajuremado, retomam as identidades forçadas ao esquecimento
Ao terminar, o artista se levanta e se deixa ser observado por todos, pintado agora com sua subjetividade, relembra os que vieram antes, suas raízes, o seu povo. Dessa maneira, em ato de transformação, o qual foi testemunhado pelo público, ele agradece entregando uma flor branca, findando seu ritual naquele momento.
Nesse ponto, a investigação da ancestralidade do performer, esgarçam indagações sobre a negritude amazônica e conexões com a cosmovisão indígena. Esse enlace encontrado, o qual foi herdado do seio das mulheres negras da sua família, assim como, o peito indígena dado pelo avô o qual era da comunidade indígena caiapó.
Dessa maneira, a urgência de discutir a retomada das subjetividades afroameríndias, juntamente como uma necessidade de ocupar os espaços de poder que são negados pela hegemonia, desemboca na criação do processo criativo que tenciona essa transição entre a cidade e a mata.
Na concepção do artista, “corpo ajuremado’’ é um corpo que está em transição entre o plano físico humano e transcende ao plano etéreo. Este percurso proporciona uma descoberta de conhecimento sobre o mundo, a fazedura de medicinas e aprendizados sobre as relações entre o homem e a natureza. Pode-se perceber que esse conceito é constituído de camadas de simbologias pessoais do artista, por exemplo, o seu pertencimento a comunidade umbandista, em uma retomada das cosmovisões afro-indígena e uma negação à colonialidade cristã, ou seja, uma reconexão e identificação com a espiritualidade das matas amazônicas.
O ato proposto dialoga com o eu, mas também com o todo. Coloca em xeque vários discursos arraigados no interior de muitas pessoas amazônidas. Outrossim, convida a nós a uma investigação de si, em um rememorar daquilo que tentam apagar, queimar, silenciar dentro de nós, povos amazônicos. É a memória da conexão com a floresta e os imaginários da cultura amazônica.
REFERÊNCIAS
SCHECHNER, Richard. Performance Studies: An Introduction. Routledge, 2002. Págs. 45-78
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