Um Segredo

Um Segredo

Performance de Bento Henrique Oliveira de Sousa
Texto de Bento Sousa, Claudia Gomes e Raphael Andrade

Dentre os variados exemplos e da gama de possibilidades de focalizarmos a performance art, seja na vertente da performance fotográfica, da vídeo-performance, das instalações performativas e tantas outras estudadas na disciplina “Performance”, as que mais foram acionadas referem-se a solos com a presença corpórea do performer, possibilitando o caráter de efemeridade pungente proporcionada pelo contato no “aqui e agora” com o público. Nessas obras, corpo do performer, é, às vezes, ferido pelas mais íntimas memórias, muitas vezes em busca do autoconhecimento.

 Contudo, o mesmo ato artístico que rememora momentos sensíveis, frágeis e ao mesmo tempo viscerais, ecoa além da intimidade, desvelando determinados problemas sociais que afetam não apenas a vida do próprio performer, mas também do público da ação performativa. E, justamente para trazer questões sociais para o jogo performático, Bento Sousa escolheu rememorar uma cicatriz em forma de Um Segredo

Schechner (2012) nos diz que o comportamento restaurado é a principal característica da performance, e é exatamente o que o performer Bento nos mostra na sua ação performática, principalmente ao rememorar uml passado não tão longínquo, que ainda o assombra, que remexe seus pensamentos, que permanece no receptáculo da sua alma.  

O artista relata que o processo de construção da performance foi por vezes complicado, pincipalmente por trazer o nu como imagem-força, uma vez que tem vergonha de expor seu corpo, torná-lo a matéria-prima da ação performativa nada seria fácil, desde a escolha dos objetos utilizados até o procedimento de materialização. Após escolher o indutor do trabalho, o artista preocupou-se com a forma de utilização de todos os materiais selecionado como objetos sígnicos, quais sejam:

  1. Bíblia – que o remete ao sagrado, mas também ao segredo que a performance explora, pois o capítulo lido em cena relaciona-se diretamente a ele;
  2. Batom carmim – cujo sentido cotidiano é ressignificado na performance; 
  3. Toalha de banho – que enxuga e despe o corpo nu, mas também é capaz de trazer à tona determinadas mensagens, como: o toque, o enxugar, a intimidade, e aquilo que Bento mais quer alcançar e superar: esconder a nudez. 
Figura 1 – Fragmento do olhar do artista
Fonte: Montagem Autoral (2020)

Tais signos são: “uma transmutação de determinadas informações para uma materialização física. Melhor dizendo, uma tradução de um determinado sistema de signos: textos, música, imagens, memória, para outro sistema de signos” (JANSEN, 2004, p. 18). E é na construção sígnica construída na performance pessoal do performista Bento, que desponta, novamente, Um Segredo. E, por ser segredo, não iremos descrevê-lo de forma convencional, mas sim, iremos dar pistas do que aconteceu naquele dia triste em Bujaru, que Bento nos revela anos depois transmutado através da arte da performance.

Era noite em Belém, havia uma fila de espectadores ansiosos para entrar na sala 08 pertencente à ETDUFPA. O simples fato de haver regras rígidas que limitavam a entrada a apenas três pessoas por vez e proibiam que se fotografasse ou filmasse a ação, já deixava os espectadores ansiosos. Mas a espera não ia além de cinco minutos para cada grupo de espectadores. Ao adentrar o recinto, as três testemunhas percebiam de antemão o grande espelho fixado na parede, a sala em uma atmosfera sombria, contrastando com um pequeno facho de luz, que permitia ver-se a figura longilínea negra de cabelos encaracolados ajoelhadas sobre um tapete. 

Nas mãos, Bento carregava uma pequena bíblia, como se pedisse perdão, mas este perdão era pra si, afinal? Logo ele nos permitiria saber que não. Bento levantava-se, com uma toalha apertada próximo ao seu cóccix e lia um dos capítulos. Em seguida, apanhava um batom de cor carmim e traçava com ele, em seu corpo, como que fios de Ariadne, como se uma lâmina afiada que cortasse em zigue-zague sua carne, o transpassasse, o ferisse, o fizesse sangrar.  

A boca, que até então só havia proferido palavras religiosas nos desvela a frase: – Vem aqui com […] VEM!- numa impulsiva entrega performática e confessional do performista. Na verbalização percebemos a implosão catártica de reminiscências, que não esconde o pavor de uma hermética particularização. Contudo, ao mesmo tempo, escancara e ilumina a percepção externa para a problemática universal desta mazela escondida por tantos oprimidos.

Bento chora, Arranca a tolha, abre seus braços tal qual a iconografia sagrada do Cristo profilático na cruz, contando não somente Um Segredo, mas gritando com todas as forças que lhe restavam contra seu fantasma do passado e que ainda o assola no presente, como se suplicasse: Deus, por que me abandonaste?

Figura 2 – Fragmentos do corpo de Bento
Fonte: Montagem autoral (2020)

A performance consuma-se. É possível verificar que os espectadores saem alterados da sala, como em um processo ritualístico de “communitas”, que, Segundo Richard Schechner (2012)é um sentimento de solidariedade de grupo gerado no ritual. Como numa sessão de análise onde está em jogo o que é dito e o que é sentido. Porque o conteúdo e o afeto são pilares da subjetividade, porque não somos somente cognição, mas, outrossim, feitos de sensações.  

Portanto os olhos atônitos dos espectadores permaneciam vidrados como voyeurs ao presenciar “Um segredo”, tentando decifrar se era aquilo mesmo que acabaram de presenciar tanto pelas ações sígnicas; quanto pela retina lancinante de Bento, com trazia o mesmo olhar da criança que pede companhia para não ir sozinha ao banheiro. 

Bento revela que tais olhares o atravessavam como uma espécie de expulsão do paraíso, devoravam-no e o consumiam de todas as formas, seja por pena, solidariedade, empatia ou por desejo. E o artista, ao rememorar, chora novamente- e, ao chorar, seu pranto escoa e se une junto às lágrimas de quem já sofreu violência na tenra infância. 

Apesar da dor, Bento faz esta memória matéria-prima do seu objeto artístico perfomático, realizando “viagens vitais e psíquicas, viagens para si mesmo, ao encontro do passado não resolvido, rumo a um encontro abissal para um abismo presente ou para um futuro incerto; rotas internas através de um processo de construção de um auto-retrato vivo.” (ALCÁZAR, 2014, p. 13, tradução nossa)

Figura 3 – Detalhes da bíblia
Fonte: Montagem autoral (2020)

REFERÊNCIAS

ALCÁZAR, Josefina. Performance: un arte del yo: autobiografía, cuerpo e identidad. México. Siglo XXI editores, 2014. 

JANSEN, Karine. Belém Apaixonada: a construção do corpo devoto nos processos performáticos das Paixões de Cristo em Belém do Pará. 2004. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) – Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, UFBA, 2004.

LIGIÉRO, Zeca (org.). Performance e antropologia de Richard Schechner. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012.

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