Cada esquina tem um pedaço meu: as ruas da memória

Cada esquina tem um pedaço meu: as ruas da memória

Performance de Ismael Souza
Texto de Artur Dória

Em Cada esquina tem um pedaço meu: as ruas da memória, a ação que se desenrola é simples e objetiva: vestido com calça e camisa brancas, segurando rosas vermelhas, Ismael Souza visita uma série de locais nas ruas da cidade de Belém que estão irremediavelmente vinculados a memórias pessoais que fizeram e fazem parte de suas vivências e formações enquanto sujeito. Ao chegar – são todos locais a céu aberto, e em sua maioria reconhecíveis para quem reside em Belém –, ele faz uma pequena reverência tocando com a testa no chão, deposita uma das rosas que traz consigo e segue seu caminho. 

A performance caminhada de Ismael Souza é direta em sua proposta, a de indagar memórias afetivas que não podem ser negadas ou esquecidas e que ele afirma como pontos de inflexão, momentos decisivos e ou cruciais que ditaram alguns dos caminhos pelos quais ele seguiu e ainda segue. São marcos de vida, presenças volantes que agora reunidas se adensam de novos sentidos e dizem do modo como ele se vê e passa a se entender a partir delas, uma seleção, evidente, e como tal, é a proposição de um caminho que o conduz a uma maior compreensão de si. 

Essas memórias, contudo, não são acessíveis senão pelo espaço físico a qual ele faz sua reverência, dado que sua ação, sobretudo, é um ato em respeito ao que ele viveu. No vídeo em que narra e apresenta poeticamente a performance não há qualquer indicação ou menção do que teria ocorrido naquele local. Isso se dá porque essa memória é trazida e testemunhada enquanto espaço e não como fato, de modo que ela permanece íntima, sem qualquer necessidade de explaná-la, e isso não se dá porque se constitua enquanto um segredo, mas porque o teor da ação não se manifesta através de um relato pessoal ou de uma elucidação factual, mas da possibilidade de encadear um gesto ritual que reforce e sublinhe o significado que estes espaços têm para ele. 

Ao optar pela rua, por se manter no espaço da rua, ao ar livre, sem adentrar lugares fechados, essa memória ganha uma possibilidade de ampliação a medida em que pode se misturar a outras memórias, as nossas próprias talvez, as de quem o acompanha, as de quem reconhece aqueles lugares. Essas memórias são postas em relevo dado que aquele não é o espaço depositário e exclusivo de sua memória, com sua ação ela se torna maior que sua especificidade, a memória em si não cabe a confinamentos, ela é sempre mutável e elegível, e com isso ela não pode ser sempre a mesma e nunca afeta por igual. Sua ação, dessa forma, vai no sentido de liberar essa memória e de fazê-la semear em outras.  

Para isso, o que Ismael faz é desenhar um mapa na cidade, um mapa que é uma maneira muito própria de acessar a cidade, e assim se imiscuir no corpo da própria cidade, ao selecionar estas memórias, Ismael acaba por sugerir uma outra perspectiva de relação com a cidade. Sua caminhada em direção a pontos que o marcaram se desdobra como um encontro consigo mesmo, principalmente no sentido de saudar e coletar uma integridade e dignidade que dizem de caminhos que só ele pode fazer. Mas são caminhos, bom que se diga, que perfazem uma via de mão dupla: caminhos que o fizeram, que o moldaram em dado nível, mas caminhos que ainda o despertam, caminhos que refazem estas memórias na medida de despertar, porque avivar a memória é avivar a sua própria existência, é saber criar meios de acessar esses pedaços de si, pedaços que por vezes estão para muito além de seu próprio corpo. 

Aprender a ler estas memórias. Aprender, sobretudo, a conviver com elas, se abrir a elas e permitir a chegada de outras, no mais, inevitáveis. Fazer caminho para se preparar para os caminhos que virão. Ele cria para si um modo de ler a cidade a partir daquilo que se assentou como momento incontornável, e assim seu percurso é um modo ativo de escrever a cidade, a cidade que já está impreterivelmente inscrita nele. 

Ao caminhar ele constrói um mapa íntimo em que cada rosa deixada se situa como uma faísca – estilhaços do seu coração, ele considera – a dizer coisas que não podem deixar ser ditas, por mais que assim se quisesse. As rosas, segundo ele, são sentimentos que ficaram atrelados a estes lugares. Já as roupas brancas dizem da pureza e ou inocência do tempo de quando estes momentos se passaram. São detalhes, no geral, que funcionam como traços de vitalidade e que sugerem pequenas preces, não à toa sua caminhada pode ser dita como uma experiência de oração visto que se caracteriza tanto por pedidos quanto por agradecimentos, além de uma profunda busca por perdão e reconciliação. Voltar e se voltar a estes lugares, se permitir ser renovados por eles, lhes bendizer um outro olhar, entrever outra perspectiva sobre a cidade e reafirmar a sua humildade diante de fatos sobre os quais ele não pode ou não pôde controlar. 

Ele cruza o espaço para se encontrar com o tempo, é essa a força da caminhada. Ele costura esses pedaços de si em um exercício de aprendizagem em que reconhece os ciclos e as experiências pelas quais passou. Ao caminhar e parar em determinados lugares que lhes guardam algum significado, ele está se dizendo parte intangível da cidade, ele afirma-se, por entre conflitos e contradições, como uma parte inevitável da cidade.  

Apesar disso, fica no ar a ambiguidade desse pertencimento, afinal, estes pedaços distribuídos na cidade dizem tanto da natureza movente que nos define enquanto seres no mundo quanto da capacidade da cidade de promover o desmembramento dos corpos, de espalhar pedaços à custa de muitos apagamentos. Pensando nisso, é importante dizer que sua caminhada se situa também enquanto um ato de refazimento, um modo de compor um corpo que seja capaz de se fortalecer diante da hostilidade da cidade, um corpo, portanto, que sabe se localizar de acordo com suas próprias demandas, que conhece os seus caminhos e sabe onde e como pisá-los. 

Desse modo, oscilando entre coisas que poderiam ser revividas ou esquecidas, ao cruzar esquinas, visitá-las e revisitá-las, Ismael reverencia e celebra sua própria história, ele as coloca na superfície de seu próprio corpo e com isso cria, para além das lembranças que elegeu, uma lembrança de si mesmo no agora, e faz isso sem tecer concessões, afinal, mais fácil seria não precisar retornar, mas como sua performance-caminhada demonstra de modo prático, não se pode avançar sem ter consigo os pontos vitais que sustentam o seu caminho. 

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