Lelê: Uma Justiça, Cega, Surda e Muda

Lelê: Uma Justiça, Cega, Surda e Muda

Performance de Fernanda Falcão
Texto de Fernanda Falcão e Cláudia Gomes

Fernanda Falcão se perguntou o porquê de um tema estar tão recorrente em seus trabalhos acadêmicos. Talvez, seria de os acontecimentos passados estarem ligados ao presente? Ou talvez até um grito de socorro, uma posição política? 

Sim, seria um grito de denúncia!

O trabalho veio ser apontado como finalização da disciplina de Performance, sob orientação da Professora Karine Jansen, no ano de 2022, no Curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal do Pará – ETDUFPA – sobre violências sofridas, nos anos 80, por uma mulher negra, da periferia de Belém, filha de um pai branco policial e uma mãe negra lavadeira de roupas. 

Infelizmente, no ano de 2022, ainda 73,7% de mulheres que sofrem violência, no Brasil, conhecem o abusador (companheiros, maridos, irmãos, padrastos, vizinhos, namorados, entre outros). (Souza, 2032)

A performance LELÊ: UMA JUSTIÇA, CEGA, SURDA E MUDA foi baseada na vida de uma mulher que teve seu destino traçado por muito tempo por casos de abusos sexuais dentro da própria família e por seu abusador direto, o esposo. 

Na década em que essa mulher sofria as violências, no país não haviam medidas protetivas para que a mesma fosse acolhida de maneira onde pudesse ter o mínimo de segurança tanto física, sexual, psicológica e patrimonial. A Lei Maria da Penha 11.340, só foi aprovada em 2006, que teoricamente: “Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências”. (Brasil: Lei11.340, 2006)

A potência da construção performática foi a imersão em uma ferida profunda de violência contra uma mulher, memórias diretamente ligadas à vida da performer.

E assim, o ato performático ocorreu na sala 4 da Escola de Teatro e Dança. A porta ficava fechada e os espectadores deveria entrar em silêncio absoluto. As luzes permaneciam todas apagadas, só se ouviam respirações e temperaturas corporais

Fala…Fernanda calmamente…Nós te escutamos no escuro! 

Dentro de alguns segundos (pausa dramática) um áudio na voz de Fernanda Falcão começou a emitir um relato, parecido com este abaixo (as luzes continuaram apagadas).

Então, o áudio teve início.

Os abusos sofridos, nos anos 80 (oitenta) pela então vítima, foram concomitantes às vidas de seus três filhos, fruto do seu casamento, com o marido-abusador.

Por diversas vezes, a vítima foi assediada também por seu pai e seu tio paterno ainda criança, por volta dos dez anos de idade. 

Na adolescência ajudava a sua mãe a cuidar de seus sete irmãos. Sua vida foi cercada por abusos vindos da família e dos trabalhos onde sua mãe a empregava como babá corriqueiramente. 

A vida da vítima foi marcada por uma sucessão histórica de violência advindas de homens mais próximos a que ela mais amava e tinha maior afetividade em determinados períodos da sua vida (pai, tio e consequentemente esposo).

Aos quinze anos, a vítima conheceu o homem que seria mais tarde seu esposo. Ele com dezessete anos, dois anos mais velho que ela, se relacionaram e por uma única vez ao manter relação sexual a gestação não desejada veio. 

Por conseguinte, ela engravidou e teve seus dias piores como mulher e adolescente. Grávida, aos quinze anos, foi expulsa de casa. 

Uma tia ofereceu trabalho a essa adolescente e abrigo, no estado de Rio de Janeiro -Brasil onde ela ficou até seu filho nascer. Após o nascimento do filho, a vítima retorna para o estado do Pará e começa a vida a dois com o pai do seu filho.

Ao passar do tempo, a vítima começa a sofrer o início violências contínuas. Primeiramente ocorrem empurrões e logo vai seguindo agressões mais intensas assim como ofensas, inclusive aos membros da família. O primeiro filho passava maior parte do tempo com a avó paterna. O pai o levava sempre que podia como forma de privá-la de estar ao lado do filho. Dois anos após há uma segunda gravidez indesejada (dessa vez uma menina), as brigas, empurrões e agressões verbais só se intensificavam a cada dia, já nem se preocupava com a presença dos filhos.

Ela foi tendo necessidade de trabalhar para o sustento dos filhos, mas o agressor a proibia de qualquer forma de trabalho. Por intermédio de amigos e familiares a mesma conseguiu sair de casa para seu sustento, levava sua segunda filha para seu trabalho que passava boa parte do dia por lá em um salão de beleza no centro de Belém, mas o pesadelo só estava começando. 

Diversas vezes o marido a acompanhava ao trabalho e ia buscá-la como forma de vigiá-la. Ao longo dos dias o esposo não contente com as saídas da mulher, resolve então proibi-la de sair, até mesmo ao trabalho pois a acusava de traí-lo. 

O agressor decidiu deixá-la em casa em cárcere privado. Sem ao menos janelas abertas e sem visitas até mesmo da sua própria família. As agressões não tinham fim, o agressor a agredia na frente dos filhos e da família sem alguma preocupação em ser punido.

Após dois anos, a vítima teve uma outra gravidez, pela terceira vez, lembrando que a mesma não tinha poder sobre seu corpo, todos os abusos, inclusive sexuais viraram rotinas. Seu marido a usava de todas as formas e como bem entendia. Ela perdeu do seu terceiro filho, após ser estuprada pelo esposo.

Quando a vítima engravidou pela quarta vez, a mesma queria dar um fim no casamento, mas terminar uma relação com três filhos, naquela época, não era nada fácil e nem tão normal aos olhos da sociedade, mesmo havendo apoio de amigos e alguns familiares. No fim, dos anos oitenta a vítima saiu de casa e foi morar coma sua mãe, onde teve amparo total até que conseguisse um emprego e uma casa para ficar. 

A vítima deixou tudo pra trás, inclusive a casa que construiu com o opressor. As perseguições não cessaram. Foram anos tentando de alguma forma que a mulher voltasse para o convívio da casa onde moravam, mas a vítima estava decidida a não reatar o relacionamento conturbado que quase tirou a sua vida e a deixou com marcas profundas na alma e no corpo.

Os filhos também foram vítimas de toda essa violência sofrida por anos. Eles e ela presenciaram, diversas vezes, violências físicas como socos e ponta pés, ameaças com armas de fogo, violência moral, psicológica entre outras mais. A mãe foi abusada e violentada por vários anos, sem que os filhos e a filha pudessem fazer algo que pudesse ajudá-la naquele momento. Essa mãe sofreu ainda violência patrimonial, onde lhe foi tirado o direito de permanecer na sua própria casa com seus filhos e filha.

E Fernanda no final do áudio fala em tom firme, altivo e compassado!

“…A vítima se chama Lenise P.M, minha mãe, empresária, 61 anos, atualmente reside no município de Ananindeua, no estado do Pará. Lenise…Minha mãe nunca foi indenizada pela perda da sua casa e nunca o agressor sofreu qualquer punição pelos atos de violência por pertencer talvez a um órgão militar do estado” (Fernanda Falcão, 2022).

Impunidade, impunidade, impunidade…infinitas impunidades…o silêncio!

A luz acende e Fernanda Falcão permanece intacta com um figurino branco semelhante ao arquétipo da deusa Themis (filha de Gaia e Urano), símbolo da justiça, juntamente símbolos que remetem à justiça: a balança que representa o equilíbrio e a espada que representa força e poder, com olhos vendados como símbolo da imparcialidade, mas na boca trouxe uma flor para que representava os pedidos de desculpas pelo agressor (que não eram poucas). O corpo apresentava marcas de agressões através da maquiagem cênica e no vestido algumas manchas de sangue.

A performance traz consigo uma imagem de uma justiça dilacerada e corrompida pela falta de comprometimento com o feminino e retrata o sexismo, o machismo, a impunidade de uma social que abusa e mata mulheres. A balança trazida na performance contém fotos da vítima com o agressor e com os filhos. Os hematomas cenográficos criados espalhados pelo corpo trazem um significado das surras que a mulher foi submetida há vários anos de sua vida sem que a justiça pudesse fazer algo por ela ou por qualquer mulher da época. 

A constância da violência doméstica é uma atrocidade humana.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Lei Maria da Penha. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 8 ago. 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 19 ago. 2023.

HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: A educação como prática da liberdade (2013). São Paulo: Martins Fontes.

MENDIETA, Ana. Fuego De Tierra. 1987 | From the Vaults. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=py4Zzdc3AzA>. Acesso em: 9 mai. 2023.

SOUZA, Ludimila. Mais de 18 milhões de mulheres sofreram violência. Publicado em 02/03/2023 – 18:19 Por Ludmilla Souza – Repórter da Agência Brasil – São Paulo. Site: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2023-03/mais-de-18-milhoes-de-mulheres-sofreram-violencia-em-2022. Acessado em 18 de abril de 2023.

3 Comentários

  1. Luciene Maciel

    Que história triste,ainda bem que essa pessoa superou essa história horrível ,ainda bem que cada vez mais estamos lutando pra que o poder público possa fazer mais leis pra punir esses homens

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  2. André Dantas

    Muito interessante e impactante. Parabéns pela performance!

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  3. Cibele Campos

    Vivaaaa. Que sua arte continue com força para seguir refletindo e denunciando os abusos do patriarcado. Amor e beleza na arte e na vida! Parabéns!

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