Performance de Raphael Andrade
Texto de Cláudia Gomes e Danielle Cascaes
No ano de 2016, em um final de tarde de uma quarta-feira, há um quadro, no pátio Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará – ETDUFPA. Nele estão duas cadeiras frente a frente. Em uma, há a imagem de uma santa estática vestida de branco com um tecido transparente, quase nua, impávida, pele translúcida e olhos fixos e tristes. Na outra, há uma placa onde se pode ler: “sente-se e escute-me” – é o apelo para que o público participe da performance, de Raphael Andrade, Flores para Pietá.
Um corpo devoto masculino travestido da mãe de Jesus, um dos símbolos da tríade da igreja católica – Pai, Filho e Espírito Santo. Um corpo que é Mãe e Filho ao mesmo tempo, corpo que acolheu e que doou, assim como Maria fez com Jesus. Um homem que é devoto daquela que ele está personificando, e essa devoção é perceptível ao olhar exterior.
A noção de corpo devoto “…refere-se a um modo de ser: dedicado, sacrificado e emocionado. Este modo de ser é construído por vários caminhos, indutores e estratégias estabelecidas pelos criadores da cena e percorrida pelos atores/performers.” (JANSEN, 2004, p. 10).
Em um primeiro momento, a performance foi apresentada em dois lugares “fixos”, “controlados”, institucionais: a Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará – ETDUFPA, no Brasil, como exercício final da disciplina Performance, sob a responsabilidade da Professora Karine Jansen, e, em seguida, na Universidade de Paris 8 Vincennes-Saint-Dennis, na França, como ação de um projeto interinstitucional, supervisionado pela Professora Cláudia Gomes. Flores para Pietá foi ainda performada em lugares sagrados/católicos: Santuário de Fátima (Portugal), Vaticano, Roma (Itália) e Catedral da Sé em São Paulo (Brasil).
No decorrer da performance, não há proteção ou controle na relação entre público e performer. Assim, durante a ação performativa institui-se um mundo de possibilidades e contingências. O performer menciona que em determinados lugares sentia-se mais confortável do que em outros. Os locais mais acolhedores, foram os campi das Universidades, ETDUFPA e Paris 8, assim como o Santuário de Fátima, em Portugal. A relação entre performance e espaço pode variar, dependendo das pessoas presentes, e/ou do lugar onde a performance acontecerá.
A performance estabelece uma relação diferencial com os espaços que utiliza. O espaço pode ser construído em função das exigências estabelecidas pelas performances; pode ser apropriado pela performance, que se adapta e improvisa o seu desenvolvimento ao espaço; pode-se transformar o espaço e torná-lo integrante de uma performance (SCHECHNER apud JANSEN, 2004, p. 25).
O performer apresenta quatro objetos: a placa, as flores, a mortalha e o coração sagrado. Estes objetos possuem valores especiais atribuídos, isto é, recebem, na performance, um significado diferente do cotidiano (SCHECHNER, 2006).
Na placa, há o convite e a regra para que o público/participante se sente e escute, com contato direto, deixando vulneráveis tanto o performer como os participantes. Na interação com o público, os signos pré-estabelecidos pelo performer são transformados,como ocorreu na segunda vez que a performance foi apresentada, durante o IX Seminário de Pesquisa em Teatro, na ETDUFPA, quando o também artista e performer Carlos Santa Cruz, silenciosamente, despiu-se e deitou-se no colo de Raphael Andrade (ver imagem). Simbolicamente, a imagem passa a retratar Jesus (menino, homem) NEGRO, morto injustamente, nos braços de Mãe. Vemos assim que as ações podem ser (re)criadas, especialmente pelos participantes, que às vezes se tornam também performers.
As flores, simbolicamente representam o presente, a retribuição, o eterno e o efêmero, o encontro e a despedida, o começo e o fim… a sublimação da dor, ou ainda, da raiva, desespero, ranço, do nojo. As flores estão sobre a mortalha etrazem “a lembrança do Nazareno morto, mas vão além, ao simbolizar os que morreram por algum ideal, por serem subvertedores…” (ANDRADE, 2019). Simbolicamente, faz ainda referência às “pulsões de morte” do performer, pois Raphael é ao mesmo tempo mãe e filho. Ele vê-se morto em seus próprios braços.
O performer relata ter percebido algumas reações de espectadores na Catedral da Sé, em São Paulo. Ao perceberem que se tratava de um corpo masculino por baixo das vestes sagradas da mãe de Jesus, os espectadores passaram a olhar com raiva o que antes estavam olhando com afeição. Podemos concluir que estas pessoas poderiam considerar uma ofensa um homem trasvestido simbolizar a mãe de Jesus, se considerarmos que o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo.Raphael manteve-se firme e aparentemente não incomodado.
Um comportamento “restaurado”, na visão de Schechner (2006, p.08) “está ‘lá fora’, aparte do ‘eu’. Colocando em palavras próprias, o comportamento restaurado ‘sou eu me comportando como se fosse outra pessoa’, ou ‘como me foi dito para fazer’, ou ‘como aprendi’.’’
O sagrado coração representa simbolicamente a dor que é exposta sem clemência. Maria carrega-o fora do peito, representando um “pedido” de perdão ao filho flagelado e morto por insurgir contra os dogmas do poder vigente; o coração representa corações atravessados pelo sofrimento, coerção, abandono, violência; é o LUTO de mãe, de muitas mães… hoje e há 2020 anos.
Por exemplo, um dos participantes, estudante de Paris 8, de origem árabe, senta-se, chora, tira o seu terço e faz uma oração. Na sua entrevista ele relata: “eu sinto dor, meu país está em guerra, são muitos mortos, eu não posso voltar… foi um momento com o meu Deus. Meu coração está disparado, eu não consigo ficar em pé…”, esse estudante e outros refugiados que participaram da performance também poderiam representar o sagrado coração.
Este momento aconteceu na universidade Paris 8, um espaço singular, pois o local parece um “pequeno planeta Terra” vivo, pulsante, cosmopolita, com diversas origens étnicas/culturais. É o não lugar e todos os devires (DELEUZE e GUATTARI, 2012). A performance de Raphael foi observada por aproximadamente 200 pessoas e contou com 22 participantes, e suas reações vão desde a comoção, emoção, fé, revolta, raiva, luto até à oração e contemplação.
Sobre a não aceitação de um corpo masculino travestido de santa, vale destacar a reação de um grupo de jovens que ficou incomodado e demostrou asco e raiva; um dos jovens não poupou insultos ao performer, como observador e como participante. Não houve negociação; a inaceitabilidade foi explícita. A incontingência do que pode advir em uma performance é uma das coisas que mais nos afetam (DELEUZE e GUATARI, 2012).
O performer realiza um ritual liminoide, quando a mudança é “…temporária (grifo nosso) – nada mais do que uma breve experiência de communitas espontânea ou uma performance com várias horas de duração em um único papel”. Schechner retoma a abordagem desenvolvida pelo britânico Victor Turner (Schechner, 2012, p. 70), para diferenciar o estado liminar, quando as mudanças tem como objetivo serem permanentes, do estado liminoide, que traz mudanças temporárias.
Nos lugares “sagrados”, Santuário de Fátima (Portugal), Vaticano, Roma (Itália) e Catedral da Sé em São Paulo (Brasil), Andrade (2020) relata que Fátima foi o local onde se sentiu mais seguro e confortável, enquanto nos outros, teve medo, por conta da homofobia. Sempre passou pela sua cabeça sofrer violência física, como o apedrejamento.
As cadeiras e a placa não foram utilizadas nos lugares sagrados. Raphael decidiu colocar as suas vestes brancas e sua maquiagem pálida e lacrimejante, com o coração sagrado no peito, a mortalha que representa o corpo de Jesus Cristo, e, sobre a mesma, as flores. E assim, o performer resolveu caminhar pelo Santuário de Fátima. Os observadores/participantes o confundiram com um artista de rua e puseram dinheiro sobre a mortalha. Por que haviam colocado dinheiro sobre o corpo de Cristo? O dinheiro (DES)valoriza o corpo devoto do performer?
No Vaticano, o performer seguiu o mesmo ritual realizado em Fátima, mas, ao fim de cinco minutos, foi a coagido a sair por cinco viaturas policiais. No trajeto de saída, caminhou e cantou “Senhor, tende piedade de mim”, seguindo em passos firmes até os arredores de Roma. O que pode um corpo dentro de um lugar sagrado?
Em março de 2020, Raphael Andrade se deslocou de Belém até São Paulo para apresentar Flores para Pietá, na Catedral da Sé. Lá o performer novamente é “convidado” a se retirar de maneira repressora e coactiva, por um segurança. Três meses depois, o registro fotográfico dessa performance é publicado na Vogue de Milão (Itália), Flore per Pietá (ver imagem), captada pelo olhar da atriz Ester Leray, que recorrentemente faz Maria na Paixão de Cristo dos Capuchinhos. Ela é mulher “escudo” do performer, que está com ele na sua “peregrinação” em todos os lugares. Ester/Maria/Devota/Peregrina/Mãe/Escudo.
A performance Flores para Pietá é transgressora e passível de ser transgredida, mesmo sendo delicada, silenciosa e sutil. Durante as apresentações, potencializou vários temas a partir dos participantes (racismo, homossexualidade, repressão, sacralidade, devoção…), mas sobretudo, o tema MORTE é recorrente, tanto para o performer, quanto para o público. Simbolicamente, carrega o sofrimento de mães e filhos de todos os lugares e tempos.
REFERÊNCIAS
DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3, 2 ª. ed. Rio de Janeiro: ed. 34, 2012.
JANSEN, Karine. Belém Apaixonada: a construção do corpo devoto nos processos performáticos das Paixões de Cristo em Belém do Pará. 2004. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) – Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, UFBA, 2004.
SCHECHNER, Richard. Public domain: Essays on the theatre. Indianópolis: Bobs-Merrill, 1968
TURNER, Victor. Liminal ao Liminoide: em brincadeira, fluxo e ritual. Um ensaio de simbologia comparativa1. Mediações, Londrina, v. 17 n. 2, p. 214-257, Jul./Dez. 2012
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