Performance de Marília Soares
Texto de Danielle Cascaes
Em 29 de novembro de 2022, Marília Soares realizou a performance intitulada “A Marca” como resultado da disciplina Performance, ministrada pela Profa. Dra. Karine Jansen, na Escola de Teatro e Dança da UFPA – ETDUFPA. Inspirada pelos trabalhos de Marina Abramovic, uma figura de renome mundial no campo da performance art, Soares empreendeu uma exploração artística profundamente pessoal. Sua motivação surgiu da necessidade de expressar seus sentimentos em relação a experiências traumáticas, violências sofridas e sentimentos de abandono.
O processo criativo de “A Marca” representou um desafio significativo para Soares, que compartilhou suas reflexões: “Um dos maiores desafios para mim foi superar minha aversão a estar no centro das atenções. No entanto, eu desejava transcender meus próprios limites”, confidenciou. Finalmente, a artista reconheceu que expor seu corpo nu era um desafio monumental, não apenas devido à sua natureza tímida, mas também devido às barreiras sociais que envolvem a nudez. A partir dessa compreensão, ela iniciou uma pesquisa meticulosa, que culminaram em três atos pré-performáticos:
No primeiro ato, que se desenrolou ao longo de três dias, Soares usou roupas curtas em todos os ambientes, incluindo sua casa, nas ruas e na faculdade. Na segunda fase, ela gradualmente se despiu, expondo partes do torso e do quadril que normalmente permanecem ocultas. O terceiro ato envolveu Soares se desnudando completamente diante de familiares e alguns amigos próximos. Ela compartilhou que sua família teve dificuldades em aceitar sua nudez parcial e total em casa, sem compreender completamente o propósito. No entanto, Soares perseverou. Tanto o processo criativo quanto a performance subsequente podem ser caracterizados como auto assertivas (Schechner apud JANSEN, 2004), pois a artista reafirmou valores sobre si própria durante a pesquisa e no resultado final.
Essas três etapas foram fundamentais para que ela pudesse definir sua visão final para a performance pública que ocorreria na Escola de Teatro e Dança da UFPA em 29 de novembro de 2022. No dia da performance, Soares entrou no banheiro dos fundos da ETDUFPA, o local escolhido para seu ato performático. A performance começou dentro do banheiro, onde a artista se despiu na presença de suas amigas e entregou tubos de tinta para que estas escrevessem palavras dolorosas em seu corpo. Em seguida, Soares saiu do banheiro e se posicionou no hall entre os banheiros feminino e masculino, completamente nua, seu corpo marcado por palavras como “PUTA” e “SUJA”, além de marcas de mãos sobre seus seios e outras partes do corpo.
Os transeuntes que tentaram acessar os banheiros se depararam com a artista imóvel no corredor, vulnerável aos olhares e julgamentos dos presentes. Uma placa atrás dela exibia a frase: “VIVER NOS DEIXA CICATRIZES, MARCAS QUE NUNCA IRÃO SUMIR. O que te marca?”, levando os expectadores até um caderno em branco, com uma caneta. Quem observava a performance poderia, caso quisesse, escrever sobre uma marca vivida, compartilhando dores e alegrias com a artista. Soares transformou o espaço do banheiro em um componente integral de seu ato performático, seguindo uma das características sistematizadas por Schechner, chamada “Lugares Especiais”, em que o espaço é apropriado e transformado pela performance (Schechner apud JANSEN, 2004).
O trabalho de Soares pode ser compreendido, de acordo com Carlson (2010), como uma “Performance de Resistência”, baseada principalmente em experiências autobiográficas e frequentemente dedicada a dar voz a indivíduos ou grupos que foram silenciados anteriormente. Carlson observa que a performance de resistência é uma prática artística predominantemente adotada por mulheres e pessoas LGBTQIA+ como uma forma de expressar suas vivências e preocupações.
Soares relata que hesitou antes de sair do banheiro, receosa de se expor de forma tão crua para pessoas com as quais não tinha intimidade. No entanto, suas amigas e colegas de classe a incentivaram a seguir em frente. Ela também enfrentou desafios relacionados à concentração, pois estava tão nervosa que sentia vontade de rir. O maior choque veio quando se deparou com a quantidade surpreendente de pessoas presentes para testemunhar a performance, uma situação que ela não esperava.
Achei que não iria aparecer muita gente, principalmente por conta do local, que não é muito movimentado. Mas apareceram muitas pessoas, e isso me deu um desespero por dentro. No entanto, permaneci firme em minha posição. Após cerca de meia hora de performance, eu já queria desistir devido ao cansaço e à dor nos joelhos, mas, ao ler os relatos compartilhados, senti que cada minuto em pé nua valeu a pena. Eu precisava expressar, não apenas por mim, mas por tantas outras. (SOARES, 2022)
A performance de Marília Soares, “A Marca”, foi um ato corajoso e impactante de autoexpressão, resistência e questionamento das normas sociais que cercam o corpo nu. Sua exploração artística desafiou tabus e provocou reflexões profundas sobre o significado de marcas e cicatrizes em sua própria vida, e na vida de terceiros. A artista relatou que possui marcas muito profundas e que ainda não consegue falar sobre elas. A performance em questão foi uma maneira de tentar se libertar de amarras pessoais, de assuntos que, ainda hoje, ela não está preparada para falar sobre. Mas o ato performático, sozinho, grita silenciosamente e expurga tudo o que ainda não é capaz de dizer.
REFERÊNCIAS
CARLSON, Marvin. Performance, uma introdução crítica. Belo Horizonte: UFMG, 2010.
JANSEN, Karine. Belém Apaixonada: a construção do corpo devoto nos processos performáticos das Paixões de Cristo em Belém do Pará. 2004. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) – Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, UFBA, 2004.
SCHECHNER, Richard. Public domain: Essays on the theatre. Indianópolis: Bobs-Merrill, 1968.
SOARES, Marília. Relatório para a disciplina Performance. Não publicado. 2022.
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