Performance de Elcio Lima
Texto de Elcio Lima e Raphael Andrade
Metáforas são muito usadas na tentativa de explicar a vida, muito embora o uso dessa ferramenta torne a arte de viver mais compreensível. Mas, afinal, quem pode compreender tudo sobre a vida? Uma performance teria esse poder? Talvez sim, dependendo do arcabouço teórico-cultural do sujeito. Independente das bases do conhecimento de uma pessoa, uma performance sempre irá causar algum tipo de questionamento, impacto, desconforto, reflexão ou qualquer outro sinônimo que melhor se aplique aos resultados obtidos por trás dos olhos de quem vê, mesmo o resultado sendo a pura indiferença (sim, ela é possível). O fato de a arte ter muitas faces, permite a performance assumir uma posição extremamente subjetiva, abstrata, quase como um Salvador Dali que salta das telas, a gerar inúmeras interpretações ou dúvidas na subjetividade de alguém.
Se a vida é uma metáfora ou devaneio, ela já não soa tão bem, desde que o ser humano começou a pensar demais em termos racionais e deixou de lado a fantasia. Podemos até fazer de conta que a vida é colorida e alegre como um filme da Disney e toda a sua representação subtextual perigosa, quando, na verdade, suas cores vibrantes (chillones, ou se preferirem gritantes) estão mais para Almodóvar, com o mesmo borrão cinza na parede alabastrina, uma pequena gota vermelha de sangue na superfície gélida de alguma construção genérica.
Se é possível fantasiar a existência, criamos o “borrão” – ora vermelho, ora cinza, ou ora por vezes transparente e damos para ele o nome de depressão – o monstro agarrado (e sempre está à espreita) nos calcanhares das quatro mãos que escrevem estas linhas, quando ainda eram crianças. Ao sitiar tais corpos de forma afligente, o borrão de aspectos múltiplos (e inconsistente) sussurra e reverbera a pressão de “ter” que ser o melhor em tudo, o exemplo, o primeiro, a pessoa perfeita e quase genial. Tudo isso parecia mais importante do que dar atenção ao medo e ao cansaço decorrente à manutenção desse posto. O sorriso no rosto taciturno devia ser constante, mas comedido. O futebol devia ser prioridade, mas aí está uma coisa inalcançável (apesar das tentativas de gostar). E ao falar em gostar, não havia a necessidade de saber o resultado da fórmula de Bhaskara, ou das capitais brasileiras (não como prioridades); mas sim das cores e suas misturas, das rimas, da lágrima de orvalho, do contraste na penumbra, das nuvens escuras e suas formas estranhas. Havia a necessidade de ser muito mais do que as fórmulas e caminhos que tentaram indicar, empurrar e obrigar a seguir.
E é sobre esses monstros/borrões que o performista Elcio Lima ancora a sua Performance denominada Submerso. Para o artista, a literalidade das ações dos signos metafóricos constituintes da referida Performance, partiu do conceito de autoficção, um termo cunhado por Serge Doubrovsky, surgido na literatura, porém, encontra lugar de reflexão também no Teatro e na Performance. Entretanto, a ideia de autoficção não deve ser entendida como uma espécie de cena autobiográfica, pois, como diz Martins (2014), “na autoficção, o autor não escreve sobre a sua vida seguindo, necessariamente, uma linha cronológica” (2014, p. 24). Também se faz relevante pensar na ação do performer, ao trazer sua vivência, desvelar o seu devir, a sua dor à tona, performatizar um recorte doloroso da sua autoetnografia[1], capaz de “orientar um percurso reflexivo sobre e a partir de corporeidades, para compreender o corpo e suas (re)performances como um território potente para a produção de epistemologia”, como defende Andrade (2023, p. 34).
No dia 16 de dezembro de 2022, os espectadores puderam adentrar no universo psicológico acionado pela performance arte Submerso. A sala 03, pertencente à Escola de Teatro e Dança da UFPA (ETDUFPA), foi a escolhida para acionar os signos presentes no ato performático. No começo da ação performática, o público é instigado pela sensação sonora do fundo do mar e a figura lancinante do performista sentado sobre uma cadeira preta (o suposto “lugar cômodo” citado por muitos). O rosto do artista portava um saco transparente (sinalizando falta de ar, desespero), um grosso laço de fita de cetim no tom carmim (a forca = desejo de suicídio) atado ao pescoço a se perder de vista sob o foco de luz sobre suas costas, com o intuito de gerar a projeção da sombra de seu corpo e dos objetos presentes na imagem (jogando uma luz questionadora quanto à ideia de pessoas depressivas são negativas, pessimistas e sem luz).
A partitura corporal revela uma tentativa de fuga, após breve momento de paralisia e asfixia real causada pelo saco plástico. A silhueta do corpo vulnerável seminu (fragilidade e vulnerabilidade), apresentava-se envolta por um emaranhado de cordas pigmentadas em tons vermelhos (a sensação de incapacidade, a paralisia ante o medo e o pânico de encarar a vida) atando mãos, braços e pernas na cadeira. À frente do performer, uma mesa com toalha e, em cima, vários frascos de remédios psicotrópicos, um cálice de vidro com água (matar a sede ou “engolir” a situação?), um pequeno vaso de vidro amarelo com uma rosa em estado de apodrecimento (a sensação do perecimento do belo), uma borboleta de plástico azul caída (uma metamorfose nunca cumprida de fato, artificial, não alça voo), uma seringa vazia e sem agulha, um caderno de anotações pessoais (ecos repetidos por uma mente ansiosa em um ciclo infindável) e, sob um banco, ao lado da mesa, uma caixa de madeira contendo um espelho, máscaras brancas e uma boina com padronagem preta e branca. Ao redor da ação, folhas deste caderno com as seguintes frases: “isso é frescura!”, “reza que passa!”, “você é bonito, não há motivos de sentir isso!”, “será que é verdade?”, “ele é estranho!”.
Após minutos de luta para libertação das amarras e do saco plástico (crise), a busca natural pelo fôlego era seguida pela procura da medicação dentro dos muitos vidros sobre a mesa, até encontrar um e engoli-lo com auxílio da água do cálice. Após essa movimentação incessante, a ação seguinte era o vestir-se. Aos prantos, o artista abotoava a camisa preta, colocava a calça cinza encontrada numa segunda cadeira ao seu lado direito, junto às botas. Feito isso, passava para a escolha de uma máscara, dentre tantas com sorrisos idênticos e colocava a boina sob sua fronte. A próxima ação é de olhar-se no espelho (é assim que querem vê-lo?), arruma tudo sobre a mesa (referência ao TOC) e, antes de sair, após mirar pela última vez a fita vermelha no alto, apaga a luz.
Era o fim? Sim, mas apenas daquele ciclo diário, como forma de expurgo momentâneo (tal qual a efemeridade da performance), da rotina tediosa, necessária e desgastante, afinal, o som do fundo do mar continua na escuridão. Contudo, naquele momento, o mesmo sonido intimamente atormentador, virava poética! E os olhos absortos de quem presenciou a ação, guardará na lembrança o ruído do monstro sempre à espreita!
NOTAS
[1] Para Denzin (2005), a autoetnografia performática possibilita uma escrita crítica sobre o nível mais básico das relações, tencionando as estruturas opressivas em nossas vidas diárias, conectadas com as nossas experiências biográficas, culturais, históricas e a própria crítica às estruturas sociais.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, R. DINAMITES DISSIDENTES: CONSTRUÇÃO (RE)PERFORMÁTICA DE UMA AUTOETNOGRAFIA.2023. xf. 205. Dissertação (Mestrado em Artes) – Programa de Pós-Graduação em Artes, UFPA, Belém, 2023.
Denzin NK, Lincoln YS. Introduction: the discipline and practice of qualitative research. In: Denzin NK, Lincoln Y, editors. The SAGE handbook of qualitative research. 3rd Ed. Thousand Oaks: SAGE; 2005. p. 1-32.
FAEDRICH, Anna Martins. Autoficções: do conceito teórico à prática na literatura brasileira contemporânea. PUCRS: Porto Alegre, 2014.
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