Ferina

Ferina

Performance de Verônica Macieira
Texto de Raphael Andrade e Verônica Macieira

fe·ri·na
adjetivo.

  1. De fera; próprio de fera.
  2. [Figurado] Feroz, cruel e desumano.
  3. [Medicina] Perigoso, maligno.

Na performance arte contemporânea, presenciamos um sem número de performistas criarem as suas ações a partir de sua própria vivência e, principalmente, com memórias dolorosas, as quais sitiam suas subjetividades. Nesse enredo, as ações performáticas são realizadas a fim de tentar responder ao sistema de opressão vivenciado na pele, ainda assim, tais ações encontram um meio de elaborar uma arma potente para explodir a condição de estarem à margem social, sem direitos, numa manutenção escravista de corpos vivos, dóceis. Logo, a(o) performer busca na sua própria vivência, um meio de fissurar as mazelas impostas a corpos historicamente silenciados, os quais foram invisibilizados e agora criam dissidências para gritar suas epistemologias, afim de ter e garantir mais direitos salvaguardados.

A título de exemplo, temos a performance arte denominada FERINA, elaborada por Verônica Macieira, cujas partituras corporais intentam discutir, primeiramente, como foi construído socialmente o poder patriarcal e como ele age sobre os corpos ensinados a serem dóceis. Ao falar em poder, Michel Foucault (2004, p. 126), sinaliza que “em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações”. O adestramento corporal começa na fase infantil, por ser considerado mais fácil de dominar, de adestrar e de invadir. O performistaRaphael Andrade (2023) nos convida a olharmos a “condução coercitiva padronizada pelo Estado, pela sociedade, pela religião, pela mídia e pelo núcleo familiar, a qual exerce um poder determinantemente de apropriação sobre o corpo-infância” (2023, p. 23).

A artista, no ato performático, faz um recorte a partir da memória infante, ao revelar ainda estar presa, encurralada na tenra infância por esse poder vigiando o seu corpo. Entretanto, apesar das mazelas sofridas quando criança, a sua pele ganhou uma camada não mais indefesa, ela reage e confronta todos os dias o trauma vivenciado fisicamente por uma criança de 6 anos de idade, assustada com qualquer aproximação a ponto de ser agressiva e ríspida, uma forma de se proteger do medo vigilante e atormentador de seus pensamentos. Ao pensar em como alicerçar as ações da performance, Verônica relembra que procurou ajudas em livros de psicanálise, em sites de ajuda na internet, leu demasiadamente sobre como superar os traumas vivenciados, contudo, indaga: e quando não se consegue superar? E quando o corpo e a mente não suportam os pesadelos, as paranoias e os sentimentos autodepreciativos? Como dizer para a fera ferida que não vão mais forçá-la a fazer coisas das quais ela se sinta suja? Como dizer pra essa criança, guardada dentro de nosso corpo adulto, que a culpa não foi dela? Que ela não vai mais ser julgada por “namorar e ser estuprada” por alguém muito mais velho. Que todas aquelas palavras de “amor você não pode contar a ninguém, porque eu te amo, e vão te tirar de mim!” eram uma prisão psicológica e física. Quem será capaz de se aproximar de uma fera traumatizada? Quem será capaz de cuidar de uma ferina? Quem conseguirá ver na ferina, apenas uma menina machucada?

A partir dessas inquirições, vivenciadas em seu corpo, a performer cria um repertório corporal simbólico, denunciando a violência física sofrida por ela, mas também reveladora de tantos outros corpos abatidos por essas memórias intrusivas e padecedoras. Nesse prisma, traz para a ação alguns elementos contextualizadores do abuso sofrido, como cordas, uma coleira (chamada coleira de obediência, com o propósito de enforcar o animal), fita adesiva, papelão, tesoura (um convite para que o público a desamarre ou, caso queiram, a machuque), uma vasilha de plástico com água dentro (comum para saciar a sede de animais domésticos), seu corpo vestido de calcinha e sutiã e marcado por tinta de tom carmim (representando machucados em sua pele) e sua ação corpórea que, semioticamente, traz um partitura animalesca.

Os signos constituintes materializam uma pessoa abusada sexualmente, machucada, arruinada, domesticada, presentificada nos objetos e no próprio corpo da artista. Esses juízos de valor são axiologias capazes de causar interferências em torno da ação. Logo, não demorou para o público tentar ajudá-la, a considerar a visualidade da performance Ferina ser atormentadora, sobretudo, para quem já sofreu algum tipo de agressão física/psíquica. Contudo, o impulso da performista foi transferir um gestualismo tocante em busca do reflexo da dor, a evocar um retrato dramático com tal dimensionamento psicofísico. O jogo entre a artista e os participantes é estabelecido na negação, quando a ofereceram ajuda, em razão de não querer benevolência à sua dor, como quem não acredita mais na humanização dos indivíduos, devido à agressividade dos outros a tornaram uma fera abatida.

No que tange à visualidade no entorno do local escolhido, no pátio da Escola de Teatro e Dança da UFPA (ETDUFPA), mais especificamente em frente ao banheiro feminino, o recinto salta os olhos de quem adentra a sugestiva ambiência transformada, efemeramente pela ação, em um cativeiro. Abaixo do corpo da performer havia um papelão escrito “seu mundo mais feliz”, frase análoga ao deleite do abusador e, na parede atrás da sua figura, um banner com a seguinte titulação: “Arte educação e cidadania nas escolas públicas dos rios e das florestas” (vide figura 1). Se foi proposital ou não, o banner ajuda a pensarmos no triste índice de abuso sexual no contexto ribeirinho, lugar onde os corpos são mais desassistidos politicamente.

Figura 1 - A ação performática de Ferina. Fonte: Arquivo pessoal da artista (2023)
Figura 1 – A ação performática de Ferina. Fonte: Arquivo pessoal da artista (2023)

Ao contextualizar uma pessoa abusada sexualmente, Ferina joga luz à temática do estupro, que é altamente subnotificado, seja por medo da vítima, seja por vergonha do tabu criado socialmente. Logo, esse tema precisa ser urgentemente discutido e combatido. Num panorama sobre esta mazela, os dados do governo federal sinalizam que, nos 4 primeiros meses do ano de 2023, o disque 100 (direitos humanos) registrou mais de 17 mil violações sexuais contra crianças e adolescentes. De janeiro a abril, foram registradas, mais de 397 mil violações de direitos humanos, das quais 9,5 mil denúncias e 17,5 mil violações envolveram violências sexuais físicas – abuso, estupro e exploração sexual – e psíquicas.

Muito além da ousadia e da coragem de revelar o seu trauma, o corpo da artista está desprotegido, passa a ser um ato-protesto contra o abuso sexual e a dominação masculina. Esse ato simbólico também foi importante para a artista (re)significar essa prática passada, sendo a Arte um meio essencial para continuar a vida e expurgar esse sentimento, quando necessário. Para Verônica, em síntese, seu trabalho parte da etimologia Ferina, como revela no começo desta escrita, apesar de ser uma fera abatida por alguém feroz, desumano, perigoso e maligno, sua camada corpórea não é mais dócil, mas sim feroz, revoltada, urgindo contra o crime do seu abusador.

Nas quase três horas de ação performática, permeada por uma indução física, sensorial e psicológica, a performance reúne extratos confessionais da autora transferidos na perda do seu direito de existir com dignidade, no intuito de dar o seu testemunho como legado de advertência. Portanto, Ferina nos mostra que a Perfomance Arte é uma ferramenta potente para contribuir com a transformação social. Além disso, a informação presente nos signos da performance e seu forte engajamento estético, de substrato político, soube dar o seu recado de resistência, importante primeiro passo para proteger corpos machucados/abusados, pois o combate contra o abusador de uma sociedade permeada pelo poder patriarcal, começa com a informação e com a denúncia.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, R. DINAMITES DISSIDENTES: CONSTRUÇÃO (RE)PERFORMÁTICA DE UMA AUTOETNOGRAFIA.2023. xf. 205. Dissertação (Mestrado em Artes) – Programa de Pós-Graduação em Artes, UFPA, Belém, 2023.

NASCENTES, Antenor. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: 1955.

FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 36. ed.Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2008.

Disque 100 registra mais de 17,5 mil violações sexuais contra crianças e adolescentes nos quatro primeiros meses de 2023. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2023/maio/disque-100-registra-mais-de-17-5-mil-violacoes-sexuais-contra-criancas-e-adolescentes-nos-quatro-primeiros-meses-de-2023. Acesso em 12/08/2023.

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