h(A) sangue frio

h(A) sangue frio

Performance de Marvin Muniz
Texto de Artur Dória

Foto: Danielle Cascaes

Atrás de uma mesa onde está posicionado um enorme bloco de gelo vermelho, o performer Marvin Muniz retira uma das muitas camisas de variados tamanhos que está vestindo e começa a esfregá-la e a envolvê-la compulsivamente nesse gelo. Soa uma sirene, ele interrompe o que estava fazendo, se posiciona na frente da mesa, espreme a camisa, levanta-a à frente mostrando-a a quem se faz presente e anuncia em voz alta um nome e a sua respectiva idade. Por fim, ele a estende em um dos varais que preenchem boa parte do pátio da Escola de Teatro e Dança da UFPA. A ação recomeça, ele se despe de uma outra camisa e torna a esfregá-la no bloco de gelo; um bloco de sangue. A performance segue por um tempo indefinido e se encerra somente quando não há mais nenhuma camisa a ser estendida; ele, agora sem camisa, vai embora. 

Sabe-se que “enxugar o gelo” (ou “enxugando o gelo”) é uma expressão popular que indica uma inutilidade, uma ação e ou trabalho sem resultado aparente, destituída de sentido, mas se assim o é, será que essa ação, tornada literal pelo performer, é também um ato frustrado? Para quem acompanha a performance h(A) sangue frio, o que é dado a presenciar ali? Para quem esses nomes são ditos? Quem são essas pessoas e qual a sua relação com esse processo de enxugamento? 

De primeiro, o que é possível notar é que a repetição do gesto permite que a performance vá se expandindo no espaço de modo a criar e marcar sua própria ambiência; a ação escorre, a ação escarra, a ação respinga, a ação impregna e assim se desdobra como uma câmara de ecos capaz de produzir estalos de vertigem. A ação evidencia a sua própria persistência, e para além do que se poderia supor, a performance não se concentra no ato de enxugar o gelo, mas sim no modo como vai sendo inscrita e articulada nesse espaço. Isso porque está sempre acompanhada por um momento de interrupção (a sirene) que é adensado de outras ações (espremer, mostrar, dizer, estender) formando um conjunto de ações que compõem um intrincado panorama social. Ademais, é preciso dizer que sua ação não consiste em enxugar o gelo, é precisamente o contrário, na verdade, ele está a encharcar estas camisas. Assim, ele executa pelo menos dois movimentos coincidentes: o primeiro, mais cru, é o de expor o sangue, e ao expor o sangue ele acaba por restituir um corpo a estas camisas de maneira que sua ação se aproxima de um ato de bombeamento e acaba por indagar uma possibilidade de circulação sanguínea. Essa é uma característica crucial de sua performance dado que ele opera certos jogos de ambiguidades em que uma ação ou algum elemento que integra a ação pode ser pensado (ou passado) como um outro. 

Dessa forma, o desejo de quem testemunha – e digo isso implicado como homem branco que sou – é que tudo isso chegue ao fim, que não tenham mais nomes a serem pronunciados. Este é o desejo, mas a performance não termina quando se encerra, ela apenas entra em um intervalo, um silêncio pesaroso. Ela tem por fim, sim, uma exaustão, não a do corpo do performer, mas a ação mesma que ele realiza, pois a vontade é de que tudo isto acabe, isto que é da ordem do insuportável, isto que não pode mais, e, no entanto, toda a ação, em sua configuração e mérito, não foi feita para dizer ou contar de um fim (ou fins), do que se passou, mas para dizer de um ato em curso. 

Essa vertigem, portanto, é a infindável roleta de nomes a serem ditos – e bem sabemos que estes nomes poderiam se suceder de modo interminável –, nomes que, apinhados uns aos outros e formando uma massa amorfa e anônima, são agora citados um a um, todos a seu tempo, guiados pelo performer que se converte em um canal de locução para dizê-los e retirá-los de sua vala comum. E é exatamente por isso que o corpo da performance tem a capacidade de entortar os sentidos, pois o que Marvin faz é inverter a lógica que regula a expressão, não é o ato de enxugar o gelo que é inútil ali, é precisamente a sucessão de fatos e atos que o colocam ali a supostamente enxugar o gelo, que o é, ou seja, todo o aparato que se dedica avidamente ao apagamento destes nomes, de livrar e ocultar esses corpos, de limpar esse sangue, de esquecê-los como se descartáveis fossem. Por mais que tentem – e por vezes conseguem – nunca o conseguirão por completo, há sempre um rastro, ainda que um rastro de sangue. 

Sim, é certo que o gelo de sangue não acabará antes das camisas em seu corpo terem se esgotado, mas é importante salientar que, ao fim, quando fica sem camisa e se vai, o que deixa atrás de si é um mostruário de vidas que agora pairam a reverberar seus nomes e suas vozes, um varal que é como um memorial das vítimas de uma insaciável máquina da morte. Ele, Marvin, segue adiante e se faz presente em direção a um futuro. 

***

A ação de h(A) sangue frio começa com a conjugação do espaço. Ele prepara tudo à frente de todos, não há o que esconder, tudo está as vistas, nada deve parecer uma surpresa. O modo preciso e meticuloso com que ele organiza e ocupa o espaço, em como ele cria e se deixa criar por esse espaço, dá o ritmo da performance. Com isso, ele perfaz uma maneira efetiva de discorrer sobre o modus operandi que permeia estas mortes. Não é obra do acaso ou acidente, existe cálculo e método que sempre dão margens para esse tipo de ação. Nessa conta, óbvio está: sempre cabe mais um. 

Os nomes congelam e interrompem. São crianças, jovens e adultos, marjoritariamente negros e moradores das periferias do Brasil, – de todos os nomes citados, o único do gênero feminino foi o da menina Ágatha Vitória Sales Félix, de 08 anos, assassinada em 2019, no Rio de Janeiro, no Complexo do Alemão – alguns destes próximos de Marvin, entre amigos, vizinhos e conhecidos do bairro onde ele mora, o Tapanã, periferia de Belém. Em comum, foram mortos em decorrência do assassinato de policiais, ou seja, mortes motivadas por vingança, uma vingança que, em realidade, é só uma circunstância, uma permissão – uma renovação dessa permissão, senão um incentivo – para matar; e matar, nesse caso, não é nada mais do que uma missão institucional, uma missão inserida na guerra diária movida contra pessoas negras e pobres.  

Sua performance evidencia um extermínio o qual ele mesmo, jovem e negro residente da Amazônia brasileira, periferia do mundo, tem presenciado dia após dia. Para quem os ouve, não são nomes de todo desconhecidos. Alguns até já integraram uma notícia enviesada aqui e ali, enquanto outros foram alvo de uma repercussão mais ampla, ainda que passageira, mas de todo que são nomes que pouco se sustentam, são nomes ditos que não implicam em qualquer significação aparente, nomes que estão distantes do nosso dia a dia, são no máximo um borrão, uma mancha ou apenas um ruído, quando muito. Todos estão ligados a um mesmo fato, um fato, por sua vez, que os mistura e os trata do mesmo modo; nomes matáveis, apenas nomes. 

Estes nomes, por sua vez, se vinculam radicalmente ao nome da performance, h(A) sangue frio, que aponta para um duplo processo, é tanto um passado quanto um futuro, ambos sem presente, dado que o presente é sempre o mesmo denominador comum. São mortes a sangue frio e que continuam a ocorrer, mortes que parecem estanques, congeladas no tempo e destinadas a repetir-se de modo incessante, em uma performance irrefreável. A ação sistemática com que Marvin executa a performance é apenas o modo sistemático com que essas mortes se sucedem e são sobrepostas umas às outras. Sua ação maquinal e repetitiva é apenas o retrato corriqueiro da banalização dessas mortes. 

O sangue é tão frio que congelou, se converteu em um bloco de gelo, e o gelo é a coisa em estado de esquecimento, é o apodrecimento que denota e documenta a nossa própria frieza: muitos de nós que aqui estamos também fazemos parte desse gelo. O frio de quem perde a vida, a vida que escapa diante de nós, dia após dia, vidas das quais não se tem notícia ou das quais as notícias não lhes reconhecem enquanto vidas dignas de nota. Assim, ao descongelar, tudo isso escorre pelas margens, pelas beiras, pelo ar, não demora muito e o sangue está se alastrando por todo o ambiente por onde se desenrola a performance, sua presença, notadamente através do cheiro, é forte e reforça a espiral de agonia ativada pela performance. Sim, porque se trata de sangue, mais precisamente sangue de frangos abatidos que foi colhido por Marvin nos matadouros de seu bairro. A relação é implícita, são corpos que se equivalem, corpos que são apenas carne para consumo, e por isso são mortos sem pena; sua pena de morte. Trata-se, não obstante, de um negócio rentável, é uma “forma de sobrevivência do Estado para garantir a sobrevivência de outros”, como Marvin aponta. É um meio para efetuar a venda um produto: “a morte precisa haver para que haja a segurança de outros”, completa. Assim colocadas, todas parecem pertencer a uma só, o que revela tão somente uma falência múltipla de vidas. A diferença é apenas setorial, a morte é praticada e administrada em áreas distintas e está sempre a serviço daqueles – uma parcela mínima – que podem ser considerados humanos.  

Conforme ele relata, sua performance se constitui como “uma forma de lembrar, lembrar de pessoas que o mundo esqueceu, esqueceu desde vivas e as matou por que ninguém sente falta”. Nesse sentido, sua ação é a de descongelar ou de descomprimir os sentidos: esfregando cada uma das camisas, o calor de cada um desses corpos simbólicos opera um processo de fusão, ele literalmente atua no sentido de mudar o estado físico desses corpos. Ao lembrá-los, ele os torna ativos, presentes, falar não dos fatos, mas das vítimas, fazê-las em primeiro plano, fazê-las se movimentar em nós. Não deve ser indiferente o fato de que ao dizer destes ele está apontando a si mesmo como uma vítima em potencial, ao final, quando também fica sem camisa, pode-se fazer a pergunta: a sua camisa também foi estendida? Talvez não, talvez ele simplesmente tenha ido sem camisa como quem indaga uma possibilidade de vida em que possa caminhar sem temer ser morto. 

De fato, quando o vemos com todas estas camisas, uma imagem reticente é de que ele, Marvin, está exposto a um estado inflamatório, seu corpo está inchado, carregado de outros corpos, e sua ação se vincula diretamente a uma tentativa de trazer seu corpo a um estado habitual, ou pelo menos, voltar ao que deveria ser o habitual, e assim, ao retirar as camisas ele também passa por um processo de enxugamento. Mas ele sabe que não há como voltar, esses que foram não voltarão, mas se assim o é, que possam pelo menos ecoar como imagens e memórias que não permitam esquecer. 

As camisas estendidas – são camisas que foram escolhidas por uma estética atrelada à periferia, de acordo com Marvin – denotam uma diferença que a ação em movimento não consegue pregar. Elas estão ali como presenças que se distinguem da anestesia maquinal da ação consecutiva. Elas estão ali, mas parecem vir de um outro tempo, um tempo anterior, de quando não eram mais um nome, um número, uma estatística. Essas camisas emergem como espectros no ar e reivindicam sua presença e história no mundo, e como tal, denotam uma força política que nos assombra, ou que, no mínimo, deveria assombrar. 

Sua performance cria um espaço de testemunho que acaba por encadear uma força de memória motivada pelo que ele mesmo testemunhou e que já não aguenta mais testemunhar, não é questão que caiba a ele resolver, ele não pode lembrar sozinho, não se trata de uma lembrança de ordem pessoal, privada, é uma lembrança que deve ser firmada e reiteradamente ouvida enquanto ato e corpo coletivo; lembrar para que seja possível sonhar. 

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