Antes que eu esqueça: tramando memórias coletivas

Antes que eu esqueça: tramando memórias coletivas

Performance de Barbara Monteiro
Texto de Danielle Cascaes e Barbara Monteiro

Sob o céu noturno de novembro, no pátio da Escola de Teatro e Dança da UFPA, a performance intitulada “Antes que eu esqueça: tramando memórias coletivas”, de Barbara Monteiro, começou a se desenrolar. Concebida como resultado da disciplina Performance ministrada pela Profa. Dra. Karine Jansen, o trabalho mergulha no complexo diálogo entre arte e memória, capaz de transformar o espaço público em um local de conexão e preservação das narrativas pessoais.

Barbara Monteiro ocupou um banco nos limites do pátio da Escola, quase no estacionamento, envolta por um longo tecido de algodão cru que se estendia sobre seu corpo. Diante dela, um rolo de linha vermelha repousava em outro banco, esperando para ser desenrolado, como uma espécie de convite subliminar. Em suas mãos, segurava uma agulha de bordar, e usava a linha vermelha para lentamente bordar o tecido. Os espectadores eram instigados a se juntar à artista, sentando-se no banco diante dela e segurando o rolo de linha vermelha em suas próprias mãos. Barbara, então, levantava os olhos do bordado em suas mãos e dirigia-o para o espectador sentado à sua frente, e fazia-lhes uma pergunta profundamente pessoal: “Qual lembrança sua você não quer que seja esquecida?”

A pergunta desencadeava um momento de intimidade entre artista e espectador, que compartilhavam suas memórias mais preciosas e vulneráveis. O interessante era que, por mais que mais pessoas estivessem ao redor das duas pessoas sentadas, a conversa entre as duas era inaudível. Dos arredores, era possível observar os lábios dos espectadores se movendo, suas lágrimas caindo, e às vezes era possível perceber que cantavam uma música. Tudo isso sem invadir a intimidade de quem relatava algo tão íntimo, quase como se houvesse se criado uma redoma em volta dos dois, que partilhavam um momento entre si e ninguém mais. Enquanto relatavam, Barbara voltava a bordar o tecido. Ao final das histórias, a artista solicitava que os participantes desenhassem ou escrevessem algo relacionado àquela memória no tecido. Com destreza e cuidado, ela eternizava essas memórias, bordando-as com o fio vermelho no tecido de algodão cru, por cima do que haviam escrito ou desenhado. A cada traço da agulha, as histórias ganhavam forma no tecido, em um bordado tramando memórias interligadas e entrelaçadas. 

A inspiração para a performance emanou da avó de Barbara, D. Laura, que lutava contra o Alzheimer e, consequentemente, perdia gradualmente as memórias que compunham sua vida. A família relata que os problemas de memória de D. Laura iniciaram em um acidente que ela sofreu, onde foi atropelada enquanto se dirigia para a casa onde morava a neta. Mas Barbara acredita que o problema se agravou ainda mais com a relação que D. Laura tinha com o marido. Um homem respeitado pelos filhos e conhecidos, mas que era um algoz para a esposa, humilhando-a, agredindo-a e abusando-a. Sobre esta relação com o avô, a artista relata:

Hoje eu não vejo mais a doença que acometeu a minha avó como o pior castigo a ela, como uma injustiça. Talvez esquecer de tudo tenha sido uma forma dela viver o resto de seus anos com a leveza que ela merecia. Eu, no entanto, ainda carrego o peso de lembranças-feridas em comum causadas por aquele mesmo homem. (MONTEIRO, 2022)

Ainda no processo de construção da performance, Barbara escreveu um texto-indutor intitulado “Das dores da lembrança e das levezas de esquecer”, com trecho citado acima, onde ela reflete sobre o quão doloroso pode ser viver, em alguns casos, carregando lembranças de acontecimentos infelizes e pesados de nossas vidas. Apagar memórias pontuais ainda não é uma opção humanamente possível, e a condição que a doença de Alzheimer impõe é que (in)justamente a maior parte dela seja deletada sem nenhum combinado prévio entre as partes. Ainda no texto ela se questiona, sem pretensão de uma resposta, se a doença veio para livrar D. Laura dessas dores e a colocar em um estado de leveza que o esquecimento, bem ou mal, a colocou.

O ato de bordar, uma prática historicamente associada à memória, à história e à habilidade artesanal das mulheres, ganhou uma nova dimensão simbólica nesta performance. As linhas vermelhas entrelaçadas representavam as histórias que se cruzam e constroem a grande trama que é a vida, e ao bordar as memórias dos espectadores, Barbara honrou não apenas a sua avó, mas todas as narrativas que moldam a nossa identidade. Narrativas estas que muitas vezes são apenas orais, não estando presentes em nenhum outro local além da mente. Histórias que são nossas, de nossas famílias ou ancestrais, e que correm o risco de se perder no tempo. 

O apagamento destas narrativas, principalmente as periféricas e femininas, passa por um contexto de desigualdade social, de gênero e simbólica. Historicamente, sabemos que as histórias dos homens das famílias, principalmente os brancos, tendem a ser conservadas, enquanto as de suas esposas vão se perdendo no tempo. Através da performance, Bárbara consegue preencher uma lacuna do imaginário e da memória afetiva através da arte, bordando existências que se cruzam pelo tecido, transpassando umas às outras, modificando-as e potencializando-as. As narrativas dos espectadores se cruzam com a dela própria, tornando possível o encontro entre pessoas que nunca haviam se conhecido, como D. Laura e Seu Gabriel, o pai falecido de Danielle, uma das autoras deste texto. Hoje, D. Laura e Seu Gabriel estão unidos, eternizados através da arte.

Antes que eu esqueça: tramando memórias coletivas” é uma obra que transcende a simples observação e convida a refletir sobre o que queremos deixar de lembrança no mundo, para que nós e os nossos não sejam esquecidos. Mais do que isso, a performance nos convida a partilhar memórias, sejam elas grandes momentos de nossas vidas, sejam acontecimentos cotidianos que viram um marco pela sua singeleza, tornando possível a propagação de conhecimentos ancestrais, perpetuando a memória enquanto parte fundamental da experiência humana.

REFERÊNCIAS

MONTEIRO, Bárbara. Relatório para a disciplina Performance. Não publicado. 2022.

SCHECHNER, Richard. Public domain: Essays on the theatre. Indianópolis: Bobs-Merrill, 1968.

MENDES, João; PIMENTA, Afonso. Exposição Retratistas do Morro. São Paulo: Sesc Pinheiros, 2023.

0 comentários

Enviar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *