As prisões que me cercam

As prisões que me cercam

Performance de Sara Letícia Santos da Silva 
Texto de Melquisedeque Matos
Fotografia de Sara Letícia Santos da Silva

No momento em que escolhemos amar, começamos a nos mover contra a dominação, contra a opressão. No momento em que escolhemos amar, começamos a nos mover em direção à liberdade, a agir de formas que libertam a nós e aos outros. (bell books, 2005)

Deixe-me dizer o que penso sobre a arte: é a capacidade de imaginar caminhos para além dos já traçados; percursos que exploram o eu e o mundo. Essa simplicidade amedronta os donos dos caminhos já estabelecidos, pois inventar é aventurar-se pelo desconhecido, desafiar o mapa e, muitas vezes, confrontá-lo.

A performance “As prisões que me cercam”, de Sara Letícia Santos da Silva tem um pouco disso, confronto; pois é o eco de uma resistência ancestral que propõe uma reflexão profunda sobre a identidade afro-brasileira e as violências causadas por uma sociedade embranquecida. Esta sociedade impõe seus padrões estéticos como normas universais, impactando negativamente as subjetividades dissidentes.

Por meio de sua memória e experiências pessoais, a performer evidencia as dores enfrentadas por mulheres negras. O cabelo crespo é simbolicamente apresentado como um espaço de opressão, onde se manifestam prisões que encarceram a autoestima, a autoconfiança e, sobretudo, a autoimagem da população negra. A obra, uma trama cuidadosamente tecida a partir de vivências e lembranças, ilustra como o racismo estrutural (Almeida, 2019) machuca as infâncias pretas, violando o direito humano mais básico: a dignidade. Essas marcas perduram até a vida adulta, manifestando-se, por exemplo, na necessidade imposta de alisar os cabelos.

Nesse âmbito, o trajeto traçado pela artista dentro da performance reflete sua busca por autoaceitação, que, apesar de trazer momentos de leveza, revela-se uma guerra constante contra uma sociedade que impõe desafios para impedir o fortalecimento do povo preto. O cabelo crespo, signo-força do seu trabalho, é visto como um território de disputa (hooks, 2019). Por isso, o ato de abandonar a chapinha é uma subversão.

A partir disso, Sara, por meio de sua voz, estabelece uma conexão com o público que a escuta. Sua voz é um grito de resistência e, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre as relações de opressão que cerceiam as vidas negras, sua forma de expressão e autenticidade. Ao questionar essas relações, a performer expõe ao público as contradições da sociedade brasileira, evidenciando a falsa celebração da diversidade enquanto, nos bastidores, perpetua violências raciais (Ribeiro, 2018).

Ao sentar-se no centro da sala para apresentar seu monólogo e refletir sobre suas marcas, Sara resgata no discurso o que é imprescindível: a humanização da luta antirracista. Em tempos de crescente hostilidade contra os povos minoritários, discursos como o seu têm sido ridicularizados e desvalorizados nas redes sociais. No entanto, no ato vivo da performance, a memória fala por si, e sua potência se reafirma.

A obra levanta a poeira escondida debaixo do tapete. Ao instigar questões cruciais sobre essas violências, fomenta perguntas como: Quais prisões nos aprisionam? Como essas prisões moldam nossas identidades e nossas condutas na sociedade? E, mais importante, de que maneira podemos nos libertar dessas prisões? Essas perguntas representam desafios profundos, cujas respostas não são simples, nem para Sara, que as propõe, nem para aqueles que as recebem.

Outrossim, a performer dialoga diretamente com a obra de Priscila Rezende, especialmente sua performance “Bombril” (2013). Elas conversam em suas imagens, sobre o enfretamento da estética opressiva por pessoas negras, além de trazer o corpo como o lugar de percepção dessas marcas. Apesar de compartilharem tanto, a potência da subjetividade é essa: falar de uma experiencia coletiva por meio da singularidade.

Posso ver em Sara, bell hooks, Djamila Ribeiro, Lélia Gonzalez, entre tantas outras mulheres negras que recusaram em aceitar as histórias brancas como únicas. Pelo contrário, elas forjam, a ferro e fogo, suas próprias narrativas, suas subversões e, por que não, suas performances. Sara, em seu corpo, já dialogava com elas, encontrando forças para arquitetar seu próprio ato revolucionário.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. Coleção Feminismos Plurais. Organização: Djamila Ribeiro. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

HOOKS, bell. E eu não sou uma mulher? Mulheres negras e feminismo. Tradução: Stephanie Borges. São Paulo: Rosa dos Tempos, 2019

___________. Tudo Sobre o Amor: Novas Visões. Tradução: Elaine Caetano. São Paulo: Rosa dos Tempos, 2005.

RIBEIRO, DjamilaQuem Tem Medo do Feminismo Negro. Editora Pólen, 2018

1 Comentário

  1. Lua Reis

    Eu vi essa performance, é incrível como desbloqueia melhorias da nossa adolescência e todo o medo de deixar nosso cabelo natural por causa do que a sociedade poderia falar. Muito lindo. Parabéns!

    Responder

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