Performance de Shis Alves
Texto de Shis Alves e Vandiléia Foro
Fotografias do arquivo pessoal da artista
Maria Carolina de Jesus, Stella do Patrocínio, Conceição Evaristo, Shislene Crislane de Sousa Pereira Alves.
Poetas, artistas, mulheres que, em suas trajetórias e obra, trazem relatos de corpos violados. Com suas artes, comunicam e mostram suas vidas e a de muitas outras mulheres. Denunciam um sistema racista, misógino, que há tempo existe no mundo.
Achille Mbembe (2018), em seu ensaio – escrita sobre “Necropílitica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte”, nos faz conhecer e entender as periculosidades de um estado soberano que vive e que morre. Mbembe diz: “minha preocupação é com aquelas formas de soberania cujo projeto central não é a luta pela autonomia, mas a instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de corpos humanos e populares” (MBEMBE, 2018 p. 06).
E que corpos são esses? Muitos! Corpos de pessoas, em sua grande maioria negras, vindas de um sistema escravista, que até à atualidade sofrem impunidades. Pobres, analfabetos, comunidades LGBTQIA+, artistas, mulheres… – que precisam cotidianamente enfrentar o sistema político que está nas várias esferas da sociedade brasileira. Faço esse recorte sobre o país em questão, por ser natural dele e perceber as lutas enfrentadas por partes que me cabem nesse processo. Percebo, sinto e leio no cotidiano, e através de ações artísticas, gritos que pedem por justiça e nos fazem ver tamanha violência sobre nossos corpos.
A performance Shis Alves, aluna da Escola de Teatro e Dança da UFPA, traz esse grito e depoimento de violência sobre seu corpo, mulher, negra. A artista, que apresentou seu trabalho titulado “Prisão oculta”, na disciplina em performance da Professora Dra Karine Jansen, conta que a ideia veio uma semana antes da finalização da disciplina, onde ela passou por um assalto em Belo horizonte, em que o assaltante colocou uma arma na sua cabeça e começou a passar a mão em seu corpo. Isto disparou gatilhos de outras situações de abusos na adolescência, em que foi violentada.
Conta que iria fazer uma performance contra o racismo e, com este ocorrido em BH, pensou trazer para cena essas questões sobre abusos, que causaram nela transtornos, como a depressão. Conta que ficou muito tempo sem falar, não conseguia se comunicar. Por isso o tema: “Prisão oculta”.
O ato da performance aconteceu dentro da sala de aula. A atuante se colocou sentada em uma cadeira; tinha também uma mesa e, em cima, pedaços de algodão. Ela entrou na sala, sentou-se diante da mesa e ficou por um bom tempo batendo na mesma, com as pontas dos dedos. Na sua frente, havia uma projeção de um vídeo, que mostrava a imagem de um relógio, que cronometrava o tempo que estava ali.
Shis Alves fez uma maquiagem que mostrava a boca costurada, remetendo ao fato de que ela não conseguia falar. Seu figurino trazia as cores pretas e amarela, em referência ao tema da depressão e ansiedade pelas quais ela passou.
No dia da performance, entramos na sala, eu, professora Karine Jansen, Arthur Dória e os colegas de turma. Shis estava sentada, dedilhando os dedos e a sonoridade do relógio acompanhava o tempo em que presenciávamos a agonia daquela mulher que queria gritar e não conseguia; a cada minuto, os dedilhados na mesa foram tornando a situação, esse tempo, inquietante.
Nessa escrita de carga viva performativa, convoco, aqui, Stela do Patrocínio (2001), que nos fala “o tempo é gás, ar, o espaço vazio”. Ela que traz em seus poemas depoimentos, experiências de sua vida, em que passou por agressões e que foi internada em hospital psiquiátrico, após ter sido encontrada como indigente. Em sua escrita é possível perceber e sentir o que foi sua vivência neste espaço e as histórias fora dele, de sua vida no Rio de janeiro.
Esse tempo, na performance de Shis, é o espaço vazio, preenchido com o ar de um olhar, esperando e querendo gritar, é o corpo em depoimento, contando dos abusos que ela, Stela Patrocínio e tantas mulheres, vivem cotidianamente, levando, em muitos casos, ao adoecimento. São diversos os tipos de violência sobre a mulher e quando se é negra, multiplica, pois vivemos em uma sociedade altamente racista, misógina, lesbofóbica, gordofóbica…, como nos faz perceber a obra “ Carga Viva: Performances Amazônicas – projeto de extensão de ETDUFPA” (2024), que traz uma série de escritas
performativas e, em muitas delas, há o depoimento de alunas que performaram as agressões em seus corpos. Há a história de Fernanda Falcão, que “ foi marcada por uma sucessão de histórias advindas de homens mais próximos a vida dela”, como nos relata Falcão e Gomes (2024). A performance de Shis se conecta aos gritos dessas e de muitas mulheres que denunciam uma sociedade machista, doente.
O patriarcado tenta normatizar os assédios e estupros, como, por exemplo, querendo aprovar o projeto de lei 1904/2024, em que tenta equiparar o aborto praticado a partir da 22º semana de gestação ao homicídio, sendo que há uma diferença enorme entre a pena para o aborto e a pena para o estuprador. O projeto de lei prevê que a mulher que aborta teria que pagar uma pena de até 20 anos e o estuprador entre 6 a 10 anos. É um projeto que tenta criminalizar as vítimas de estupro e revela brutalmente a desigualdade de gênero. Esse é um exemplo de projetos de estado do qual nos fala Mbembe (2018), onde se quer a destruição material de corpos humanos e populares.
O tempo foi se dilatando e o gás da dor comprimindo. Naquela ação de um corpo em estado de “Prisão oculta”, eu precisava desabafar. Fui até ela e comecei a desamarrar sua boca, que estava “costurada” com fios e cola. Nesse momento, sua respiração e lágrimas foram acalmando e voltando para o estado natural.
REFERÊNCIAS
JANSEN, Karine e LATIF, Larissa. Carga Viva: Performance Amazônica. Belém/Programa de Pós-Graduação e Artes/UFPA, 2024.
MBEMBE, Achille. Necropolitica: biopoder, soberania, estado de exceção, politica da morte. São Paulo: N-1 edições, 2018.
PATROCÍNIO, Stela do. Reino dos Bichos e dos animais é o meu nome. Rio de janeiro: Azougue Editorial, 2001.
TRIPODE, Mariana. Projeto de Lei 1904/24 e a criminalização do aborto tardio: uma perspectiva crítica de gênero. 2024. Disponível: < www.jusbrasil.com.br/artigos/o-projeto-de-lei-1904-24-e-a-criminalizacao-do-aborto-tardio-uma-perspectiva-critica-de-genero/2555414972 > acesso em: 21 de janeiro de 2025.
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