Performance de Lauren Nunes e Marina Ribeiro
Texto de Melquisedeque Matos
Fotografias de Lauren Nunes e Marina Ribeiro
Tempo de viver, propõe uma ideia: Há tempo para viver?
Lauren Nunes e Marina Ribeiro articulam, de forma sensível, um desabafo que, muitas vezes, soa como um pedido de socorro. Tempo de Viver é uma obra da dupla de performers que captura, de maneira crítica e poética, o esgotamento físico e mental do corpo humano na filosofia laboral contemporânea. Trata-se de um trabalho tecido a partir dos esgotamentos pessoais diários, mas que, no ato performático, deságua em narrativas coletivas.
Como já dizia Salles (2011), o artista é um produto de seu tempo, embriagado pelo contexto em que vive. A performance se cria antes mesmo de sua realização; ela já estava presente no corpo cansado pelas rotinas extenuantes de trabalho e nos esforços de conciliar disciplinas acadêmicas como a de performance. A obra também ressoa os debates atuais nas redes sociais, como o movimento pelo fim da escala 6×1.
O desalento é a marca do corpo do século XXI. O capitalismo sistematiza as formas de trabalho em que estamos inseridos, perpetuando a repetição industrial dos gestos cotidianos: assinar, carimbar, organizar papéis; assinar, carimbar, organizar papéis. Esse ciclo contínuo de alienação e desgaste no trabalho evidencia como as demandas diárias esvaziam a energia mais vivaz do indivíduo (Han, 2015).
Por meio desse olhar, a performance se constitui e se estrutura. A visualidade marcada pela repetição mecânica da corporeidade do cotidiano. O ato performático se constrói com as duas performers mostrando ao público sua experiência de vida e o tempo que são gastos em um cenário corporativo. Mesas, cadeiras, letargia, carimbos, cansaço, repetição, dores articulares. Enquanto as ações acontecem, áudios são reproduzidos; testemunhos dos sentimentos daqueles que ficam em casa, aqueles que sentem as ausências. Amigos e familiares protestam juntos, pois o formato de trabalho estabelecido afasta cada vez mais o que nos resta: o afeto.
O comportamento repetitivo é peça central da obra, em diálogo com Schechner (2011), ao destacar a restauração desse comportamento-memória – aqui voltado para os ritos diários –, propondo, por conseguinte, uma ressignificação simbólica desses gestos. A performance traz à tona o cansaço, a “não-vida”, e esse tempo capturado por aqueles que detêm o poder e definem as regras do jogo.
O jogo do cansaço arrasta a performance para uma linha tênue, um lugar entre a vida e a performance – nunca para o falso, pois não é disso que se trata –, mas para um momento ínfimo em que a representação se confunde com o próprio movimento da vida (GLUSBERG, 2005). Do lugar onde me coloco, percebo isso nos limites que a mente e o corpo ultrapassam. O cansaço também nos desnuda. A performance propõe o cansaço no ato e o cansaço na vida, relembrando constantemente a negada possibilidade de se viver.
A repetição não é apenas uma alegoria técnica, mas um signo fundante que fortalece a sensação de aprisionamento e resiliência, instigando o público a olhar para si, olhar para as suas próprias rotinas e ciclos de exaustão. A imagem de duas pessoas em uma mesa de escritório, carimbando burocracias, é familiar a todos que me leem, assim como o sentimento de estagnação. É por aí que se encontra comunicação, pois “[…] o performer busca novas vias de acesso à comunicação artística, que o põe em contato com seu corpo e o espaço circundante, em condições diversas das experimentadas por aquelas disciplinas.” (ibidem, p.67. 2005)
Por fim, Lauren e Marina, ao olharem para si, lançam um pensamento potente:
“A gente trabalha para que não falte nada em casa, mas sempre falta a gente”.
Essa frase arremata o sentido central da performance, evidenciando como, cada vez mais, há uma precariedade da vida. Necessitamos estar em intensa labuta para poder usufruir da dignidade, a qual até então acreditávamos ser inerente a nós; porém, não é, pois, para viver dentro do sistema capitalista, deve faltar o mais importante: nós na vida.
REFERÊNCIAS
GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. Tradução de Renato Cohen. 2ª reimpressão da 1ª edição de 1997. São Paulo: Perspectiva, 2005.
HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2015.
SALLE, Cecília. Gesto inacabado. 1. ed. São Paulo: Editora, 2011
SCHECHNER, Richard. Performance e antropologia. Organizado por Zeca Ligiéro. 1. ed. São Paulo: Mauad X, 2012.
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