Entre nós

Entre nós

Performance de Diana Lins
Texto de Artur Dória

É em um certo estado de mundo onde somos estimulados de maneira voraz por dispositivos que não permitem tempos de permanência em meio a uma disputa alucinada pela captura de nossa atenção que são geradas condições que nos expõem a uma certa debilidade de escuta. Essa escuta pode ser caraterizada como um ouvir que se dá mediante uma percepção prolongada e dedicada, uma atenção intensiva não reduzida ao dado sonoro e que repercute e impulsiona afetos quando na presença de um outro. A atenção, assim, sendo constantemente requerida em muitos lugares de maneira simultânea, passa por um processo de esfacelamento e desmaterialização, que se dá em meio a uma produção em série de relações cada vez mais mediadas e filtradas. Por sua vez, a comunicação, sempre entrecortada, é reduzida a produção de conteúdo superficial em porções industriais, sendo marcada pelo acúmulo e por uma vontade insone de preencher o tempo com uma quantidade abusiva de informações que devem ser consumidas a todo custo. 

É pensando nesse intrincado contexto de contradições e suas muitas dinâmicas que se abatem sobre os modos como temos deixado de escutar uns aos outros, que a performance Entre nós, de Diana Lins, se orienta criticamente. Indo no contrapé desses processos, ela está interessada em despertar um determinado estado de fala e escuta. Em performance, de coração na mão, ela oferece sua atenção de maneira a produzir um espaço-tempo de abertura para que estranhos possam se perceber sendo escutados. Ela pratica a atenção a partir do ouvir e experimenta estar e permanecer nesse estado, mostrando-se disposta a interferir nesse nó, um dos pontos de atrofia do cotidiano, se colocando ali, no ponto em que o nó se torna nós.

Belém, Praça Brasil, 16h, 29 de outubro de 2024. Vestida de preto, Diana tem em mãos uma pequena caixa vermelha em formato de coração com uma fita branca de cetim que a enlaça. Ela caminha pela praça olhando ao redor, observando o comportamento das pessoas, e assim permanece até se sentir confortável em abordar alguém, em geral, alguém que ela perceba mais solitário. “Você quer abrir o coração” é a pergunta de aproximação que firma o contato, por vezes desconfiado. Se a resposta for positiva, a pessoa deve abrir o laço do coração e de lá retirar uma tira de papel com uma frase de dentro do coração, frases indutoras como “uma história de aventura” ou “uma história de amor”. Ao retirar, outra pergunta: você quer contar essa história? Ao dizer que sim novamente, ela conta a sua história e a performer nada mais diz, apenas escuta, sem oferecer qualquer resistência ao que é dito, ou seja, sem interromper. 

A ação, que teve duração de três horas e meia em que ela, se apresenta como um jogo de formato simples, que, em verdade, se dá como uma proposição ou mesmo um convite. O jogo, como se sabe, se constitui como um aspecto fundamental da performance dado que “cria o “como se”, a arriscada atividade do fazer-crer” (SCHECHNER, 2012, p.93). Nesse caso, a pessoa pode aceitar ou não jogar esse jogo do qual não sabem ao certo as regras ou sua estrutura, sequer sabem que é um jogo, de modo que jogar-participar é igualmente performar: a ação se efetiva, ganhando densidade e sentido à medida em que as pessoas aceitam participar, afinal, ela só pode se dedicar a escutar se alguém se dispuser a falar. 

Desse modo, Diana se coloca na esteira de uma vasta tradição de performances realizadas em espaços públicos, a exemplo de Regina José Galindo, Lotty Rosenfeld e Eleonora Fabião. São ações, via de regra, que se colocam sem aviso prévio nas entranhas e nas dinâmicas destes espaços e alteram ou perturbam, ainda que de forma passageira, alguns de seus fluxos e configurações. Algumas repelem, enquanto outras atraem. Nessa tradição, mas não só, há uma série de performances que se interessam em pensar essa interação entre estranhos inesperados, e se dão na relação entre o(a) performer e um outro ou outros, humanos ou não. Muitas destas performances se constituem a partir das possibilidades de se produzir encontros, o que implica uma intensa atividade relacional. Para se efetivar, é preciso que ocorra uma ativação, um entendimento ou consentimento entre as partes, o que pode ou não resultar em uma reação. Isso pode se apresentar de diversos modos, mas a rigor, é possível apontar que o(a) performer sempre coloca um problema em relação aquele ambiente em que ele(a) se dispõe, que pode ser mais ou menos explícito. Sua presença e o que ele(a) traz enquanto presença, considerada enquanto elemento que rasura os códigos habituais, insinua uma questão, mesmo que efêmera, que pode ou não ser respondida – se eventualmente percebida -, em que o ponto crucial é como essa questão instaura ou repercute em algum movimento.

Qual questão Diana nos traz ao empreender sua ação? Em um primeiro momento, é importante notar que apesar de realizada em espaço público, Entre Nós é uma performance que se passa em um espaço de intimidade. É um jogo afetivo que se dá como uma conversa privativa, entre aquele que fala e aquele que ouve, não sendo de maneira alguma uma relação que se expressa em direção a um público maior. Ela concebe a ação como uma tentativa de estabelecer uma cumplicidade, e o recurso que encontrou foi utilizar as frases nos papéis, de modo a provocar algo, uma memória que possa vir à tona e que possa ser compartilhada. O uso da palavra, ao invés da fala, é um elemento disparador que cria um efeito balanceador, como é algo que a própria pessoa sorteia, a performer se esquiva de pedir de maneira direta que você fale sobre determinado assunto. O que se passa, então, entre estes dois quando é firmada essa breve cumplicidade?

Romper a ordem e a dinâmica habitual destes espaços e de suas ocorrências costumeiras tomando contato com estranhos a partir de estranhas aproximações, é uma abordagem que se insinua na possibilidade de infiltrar um espaço dentro deste espaço, uma realidade em que algo indefinido se passa sem a necessidade de um sentido direto ou um conteúdo a ser desvelado, senão de um esboço instantâneo de uma forma que é firmada – ou retomada, como parece ser o caso aqui – e que vai ganhando força de permanência. Isso se dá, em grande parte, porque as performances visam produzir certas “relações que podem se configurar como utopias efêmeras que se alastram para além do tempo instituído pela ação performática” (ALICE, 2016, p.126). Nesse viés, a proposta de Entre Nós, é o estabelecimento performativo de uma conversa, mas uma conversa jogada dentro, que ganha aderência para além do que é dito, situando-se como um reconhecimento daquele que fala, e quem sabe, superando, ainda que momentaneamente, a irritação de relações marcadas por uma espécie de surdez crônica ao que se passa ao redor.

Diana prontifica uma presença que questiona o corpo em estado de enrijecimento, um corpo de sentidos empobrecidos, saturados, e que vai sendo arquivado e relegado ao ensimesmamento, o que implica uma ausência de movimento, de vitalidade; um corpo que é impedido de experimentar porque não tem como contar a si mesmo, não tem como produzir e narrar histórias sobre suas próprias experiências, um corpo que é constantemente interrompido de circular e por consequência de compartilhar. O coração que ela segura é um coração que está em estado de arquivo que ela convida a ser aberto; ao abrir, ainda que não se deseje seguir adiante e contar a história, o acontecimento afetivo já está selado.

O que acontece quando estranhos se encontram? Diana se questiona se os estranhos não teriam uma capacidade melhor de receber e absorver aquilo que dizemos em comparação com pessoas que nos são familiares. Para descobrir ou constatar, sua performance se situa como um experimento de ordem prática que a desafia a ouvir de forma plena, o que ela chamou de “escuta sensível”. Ela pergunta a pergunta em si mesmo, e se coloca em estado de disponibilidade relacional, uma presença que se expressa na sensibilidade de um corpo ouvinte: ela é a estranha que quer ouvir. Eu não conheço você, você me é estranho, eu quero te ouvir. Mas para esboçar uma resposta ela tem que saber como estas questões passam e se instalam em seu próprio corpo enquanto performer, afinal, “performances são materializações, no corpo, das insatisfações e reflexões acerca do nosso entorno, inquietações suficientes fortes, que nos impelem à ação” (CASTANHEIRA, 2018, p.146). Para ouvir, porém, ela precisa praticar o silêncio, e para isso, ela precisa encarar a sua própria vulnerabilidade, ela relata, por exemplo, que ao finalizar a performance encontrou-se “mentalmente esgotada”. A performance se dá como uma conversa, mas de outra ordem, trata-se de uma alternância sutil entre o som e o silêncio. O silêncio que ela oferece é voluntário, é um exercício, e pode ser pensado como uma atividade contemplativa. Mas o que a performer está a fazer quando se coloca nessa posição de ouvinte silenciosa, em que apenas se deixa ser modelada pelas palavras de outrem? Ela assim explica: “o ouvinte se afasta ou se descentraliza de sua própria experiência por tempo suficiente para entrar na experiência e no mundo do outro”.

Mas se pouco se escuta nesta condição de mundo, o quanto ela é capaz de escutar? Sua ação é também uma medida para destravar a si mesma? Quando a fita é desamarrada, entre os dois, a performer e a pessoa que foi interpelada, parece se estabelecer um compromisso efêmero: ao tempo em que a fita é desamarrada, os dois acabam se amarrando, em um laço que pode ou não ser dado, a depender da disposição. Um nó que é desfeito e outro que é refeito. Uma entrada e uma saída, um circuito afetivo onde algo pode se afirmar de maneira mais desinibida, um algo que tem início e fim, e que é muito mais do que apenas o registro de uma história. Os dois se abrem – ainda que permaneçam dentro de certos limites – cada um a seu modo e sem maiores explicações.

Sabe-se, ademais, que a fala carrega em si um composto excessivo. No caso de Entre Nós, a fala ganha uma outra densidade, é uma fala requerida, uma fala que, certa forma, é colhida. Diana se coloca na intenção de querer ouvir, mas ela não sabe o que vai ouvir, ela vai ouvir o que não sabe e pode ouvir o que não quer, de modo que o que está em jogo é o próprio estado de permanência no ato de ouvir, de deixar a pessoa falar e saber que ao falar será ouvida, e aqui é como se ela intuísse que o excesso da própria fala pudesse curar a si mesma, algo como tirar a fala de sua própria solidão. Sua ação, então, visa despertar a fala a partir da instauração de uma presença que aponta uma passagem para que as palavras possam se manifestar livremente, mas como alguém sabe se está sendo ouvido?

REFERÊNCIAS

ALICE, Tânia. Performance como revolução dos afetos. São Paulo: Annablume, 2016

CASTANHEIRA, Ludmila. Performance Arte: modos e existência. Curitiba: Appris, 2018.

SCHECHNER, Richard. Jogo. In: Performance e antropologia de Richard Schechner. Org: Zeca Ligiéro. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012.

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