Quantas pessoas pretas você já amou?

Quantas pessoas pretas você já amou?

Performance e texto de Wellington Bastos Maciel

A performance intitulada “QUANTAS PESSOAS PRETAS VOCÊ JÁ AMOU?” investiga, questiona e reflete a relação de como corpos pretos são retratados na perspectiva do afeto e do amor para com outras pessoas, seja com pessoas pretas ou brancas. Historicamente, o corpo negro não foi socialmente construído para ser amado, mas sim para fins de serviço e objetificação. Então, como ocupar lugar na economia do desejo, se constantemente somos condicionados e limitados a esse nicho? A invisibilização da bixa preta dentro dessa economia deslegitima seu desejo, tornando-o inválido, colocando-o em segundo plano e restringindo-o à objetificação e hipersexualização do corpo preto.

ne·gli·gên·ci·a (s.f.)

  1. falta de cuidado; incúria.
  2. falta de apuro, de atenção; desleixo, desmazelo.      
  3. falta de interesse, de motivação; indiferença, preguiça.  

A negligência parte de mim por aceitar situações de abuso psicológico em nome desse amor, resultando em um desleixo por não prestar a devida atenção aos meus próprios sentimentos. Essa falta de cuidado com o que realmente sinto surge do medo de ficar só e, inclusive, esse medo faz com que muitos de nós, pessoas pretas, evitem se relacionar por medo de se machucar e, posto isso, optamos por não permitir o afeto.

A performance em tela tem como fulcro os traumas e negligências, vivenciados por mim, em relação aos afetos e desafetos, do amor e ao não-amor, do pertencer e ao não-pertencer. Baseio-me nos escritos de Veiga [2018], ao discorrer, justamente, sobre economia do desejo em relação à bixa preta, sobretudo, na maneira como somos vistos perante a sociedade hetero-branco-cis-normativa. Em um de seus trabalhos, ele nos fala justamente da “bixa preta”, como ela se torna tudo o que a sociedade do homem-branco-hétero rejeita, ocasionando na negação da identidade, muitas vezes forçando-as a adotar atitudes heteronormativas como forma de autoproteção, este “desejo é colonizado pelo capital, que é branco, o que o desejo passa a desejar é a brancura. Que lugar, então, restaria para a bixa preta na economia do desejo?” (Veiga, 2018, Pag. 83).  Ao ler Veiga [2018], comecei a refletir sobre essa questão, tal qual sobre meus relacionamentos amorosos e afetivos. Inconscientemente, eu buscava a validação da figura do homem branco para ser aceito na sociedade, ocasionando, nesse prisma, no apagamento da minha identidade, na tentativa de agradar o outro. Portanto, qual “lugar então restaria para a bixa preta na economia do desejo?” Essa é a pergunta que inquiro todos os dias, junto a outras, tais como: será que vou ser amado? Sou visto apenas como amigo e não como alguém digno de receber afetos? Serei eu o escolhido?

Pensando nisso, a performance “QUANTAS PESSOAS PRETAS VOCÊ JÁ AMOU?” foi estruturada em cinco etapas principais: a criação do formulário, a leitura e gravação dos relatos, o processo de captura das fotos e criação dos QR codes, a apresentação da performance em si e, por fim, o seu encerramento.

O formulário virtual foi criado com intuito de utilizar a tecnologia para realizar uma pesquisa com diversos relatos sobre as experiências das pessoas se relacionando com pessoas pretas, contendo a pergunta com o título central que orienta a proposta: “Quantas pessoas pretas você já amou?”. O referido formulário oferecia duas opções de resposta: Se a resposta fosse sim, eu gostaria de saber mais sobre a experiência desta relação com uma pessoa preta. Como foi compartilhar afeto e também lidar com as inseguranças que essa pessoa trazia consigo? Já se a resposta fosse não, eu queria buscar entender por que isso nunca aconteceu. 

Após a conclusão da coleta das respostas, encerrei o acesso ao formulário e, em seguida, imprimi todos os relatos compartilhados pelas pessoas. Utilizei meu celular para gravar a leitura de cada um dos mais de 40 relatos, depois os editei, haja vista que, posteriormente, esses áudios seriam utilizados durante a performance. Além disso, guardei os relatos impressos, pois, durante toda performance tocava como sonoplastia de fundo todas as respostas do formulário.

Na performance QUANTAS PESSOAS PRETAS VOCÊ JÁ AMOU?, optei por fotografar meu próprio corpo nu/cru, além de técnicas de maquiagem para criar hematomas em todo corpo, como a utilização de sangue cenográfico para intensificar o impacto visual. A escolha dessa estética foi para justamente simbolizar as marcas emocionais que nós, bixas pretas, carregamos, com o intuito de intensificar a vulnerabilidade e a dor de uma forma imagética visceral. Como diz Deleuze (1990), a performance permite um entendimento mais profundo da realidade, oferecendo um olhar que vai além das aparências superficiais e revela camadas ocultas e complexas da experiência humana. Ao partir dessa ideia, decidi criar QR codes para ação, pois eles ofereceriam acesso as fotos específicas de partes do meu corpo. 

Cada QR code foi criado para direcionar a uma imagem distinta de diferentes partes da minha constituição física, tais como: meu rosto, minhas pernas (esquerda e direita), meus braços (esquerdo e direito), minha barriga, minhas costas, minha genitália, entre outras áreas. Segundo Glusberg (2011), a performance tem o poder de trazer à tona conflitos psicológicos profundos, os quais abalam a estabilidade emocional do indivíduo. Logo, o meu objetivo era revelar o que se esconde dentro do corpo negro, no seu aspecto mais íntimo, além de externalizar as dores que ele carrega, causadas pela sociedade cis-embranquecida que fere, dilacera e corrompe esse corpo. O público foi convidado a acessar apenas um QR code de  cada vez, confrontando uma parte específica do corpo e encarando a dor presente naquela área.

Figura 1: Imagem ilustrativa criado por mim de como cada QR code estava posicionado ao decorrer de toda a performance.

Outro elemento importante da performance, foi um balde cheio de sangue cenográfico composto por uma textura pegajosa, que permaneceu ao meu lado durante toda a performance. A minha vestimenta era toda branca e meus pés estavam descalços, sobre o tom branco, faço um adendo o que pensa Haller (2021), ao referir que o tom branco é frequentemente associado à pureza, à paz, à inocência e à simplicidade, remetendo à sensação de limpeza, clareza e frescor, além de ser vista como símbolo de neutralidade e perfeição. Dessa forma, o que acontece quando esse símbolo de pureza é manchado pelo vermelho? O branco, então, torna-se impuro, corrompido, sujo e depreciado? O vermelho, entretanto, carrega a simbologia representativa da raiva, ira, fúria, desejo, excitação e violência. Se o branco remete à “santidade” e a perfeição, o vermelho simboliza o pecado, o carnal, o sanguinário e o profano, segundo alguns prismas religiosos. A tensão entre essas duas cores na performance visava explorar a ruptura da pureza e a exposição de feridas e marcas deixadas pela sociedade.

Após a pessoa acessar o QR code de sua escolha, disponibilizado atrás de mim, ela era convidada a se dirigir ao balde de “sangue” cenográfico e submergir as mãos de tinta, para que logo após pudesse bosquear a parte do meu corpo, tal que havia visualizado no QR code, deixando manchas sob a roupa branca. Esse ato simbolizava a transferência das marcas e feridas sociais, tornando visível e palpável o impacto da violência e das dores internalizadas, transformando meu corpo, simbolicamente, em um palco de conflito da pureza e profanação.

Conforme Glusberg (2011), a performance atua como um código secreto, revelando rituais invisíveis por trás dos rituais visíveis, sugerindo a existência de camadas ocultas de significado e simbolismo que aprofundam a experiência performática. O ato de selecionar um QR code, visualizar a imagem correspondente, imergir as mãos no balde de sangue e, em seguida, depositá-lo sobre meu corpo vestido de branco é um processo impregnado de ritualidade. Richard Schechner (2003) afirma que “a performance não está em nada, mas entre”. Esse conceito se aplica diretamente às etapas desta performance, iniciadA no momento em que começo a coletar e forjar os relatos, criando uma narrativa que transita entre a exposição do íntimo e o confronto com as marcas simbólicas deixadas pela sociedade.

Performei por duas horas e meia e, ao final, utilizei o alguidar com todos os relatos coletados e ateei fogo neles. Heráclito (2000, p. 63) afirma que “o fogo vive a morte da terra, e o ar vive a morte do fogo; a água vive a morte do ar, e a terra vive a morte da água”, associando o fogo a um processo contínuo de transformação e renovação, onde a morte de algo gera o nascimento de outro. Dessa forma, o fogo na minha performance foi tratado como um agente de libertação e continuidade do ciclo da vida. Queimar os relatos representou a liberação dos sentimentos de dor, despedida e insegurança expressos neles, enquanto outros relatos refletiam experiências positivas compartilhadas entre pessoas pretas. O fogo, ao mesmo tempo, restaura e purifica, fortalecendo esses laços para que sejam duradouros. Como nos ensina Friedrich Nietzsche (1886), “O que não me mata, me fortalece”, uma metáfora que reflete o poder do fogo em transformar e fortalecer.

Figuras 2 e 3: Fotos do performer e do alguidar com os relatos sendo queimados no fim da performance.
Fotos feita pela @danielle.cascaes.

Concluo que a performance “QUANTAS PESSOAS PRETAS VOCÊ JÁ AMOU? é uma experiência profunda que me levou a explorar as complexas fissuras que vivencio enquanto homem negro, afeminado, bixa preta e LGBTQIAPN+. É também um espaço de reflexão para pessoas iguais a mim que vivenciam e sofrem nessa economia do desejo que frequentemente nos deixa sem espaço para nos relacionar, sendo com outras pessoas pretas ou brancas.

Ao utilizarem o QR codes, convido-os para acessar o avesso do meu corpo nu/cru fragilizado, machucado e ferido e questiono-os em observar as realidades sociais e emocionais que cercam as relações afetivas com pessoas pretas. Cada etapa apresentada durante toda a performance carrega significados profundos, simbolizando rituais que revelam as cicatrizes deixadas por uma sociedade cis-embranquecida.

O presente ato performático, portanto, não apenas expõe minha vulnerabilidade, mas busca escrachar as realidades das dores internas que estão ocultas. Confrontando o público com essas verdades, busco evidenciar que a sociedade possui uma boa parcela de responsabilidade em negligenciar e ignorar a existência dessas experiências. Essa interação visa forçar uma reflexão crítica sobre o papel que cada um desempenha na perpetuação do silêncio e da indiferença, desafiando-os a reconhecer e confrontar as realidades que muitos preferem não ver.

Agora me dirijo diretamente a você, caro leitor, QUANTAS PESSOAS PRETAS VOCÊ JÁ AMOU?

REFERÊNCIAS

DELEUZE, Gilles. Cinema II – Imagem-Tempo. Tradução de Eloisa de Araujo Ribeiro. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990.

GLUSBERG, Jorge. A Arte da Performance. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2011.

HALLER, Eva. A psicologia das cores: como as cores afetam a emoção e a razão. 1. ed. São Paulo: Olhares, 2021.

HERÁCLITO. Fragmentos. Traduzido e comentado por Gerd Bornheim. São Paulo: Cultrix, 2000.

SCHECHNER, Richard. O que é performance? Estudos da Performance. Revista O Percevejo, UNIRIO, Ano II, n. 12, 2003.

VEIGA, L. As diásporas da bixa preta: sobre ser negro e gay no Brasil. Tabuleiro de Letras, v. 12, n. 1. Disponível em: https://dicionario.priberam.org/neglig%C3%AAncia. Acesso em: 29 jan. 2025

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