Performance de Tertuliana Lopes
Vídeos de Tertuliana Lopes
Texto e fotografia de Danielle Cascaes
Na performance de Tertuliana Lopes, apresentada no encerramento da disciplina ministrada por Karine Jansen, o corpo não está só: carrega a memória, a casa, os gestos interrompidos da maternidade envelhecida. A cena emerge de um processo sensível, iniciado numa oficina com mulheres da Comunidade Unidos Venceremos, na Pedreira, onde o escutar se tornou a primeira ação performática. Dali, um relato sobre o envelhecer, o cuidar e o abandono ressoou fundo na artista — e a atravessou: “me vi como me sinto cuidando da minha mãe, D. Maria Trindade Lopes”.
Ao construir sua performance, Tertuliana levou sua mãe para dentro da cena — e, sobretudo, para fora de casa. O gesto, antes de tudo, era de cuidado: permitir que aquela senhora de 87 anos, que aos poucos perde a força nas pernas, saísse do confinamento que a idade e a cidade impõem e se visse novamente em movimento, ainda que simbólico.
D. Maria, mulher negra, vinda da roça, trabalhadora da mandioca, da castanha, da faxina. Mulher que, como diz a filha, “esqueceu de cuidar da própria saúde”, porque sempre esteve ocupada cuidando dos outros. Agora, diante da fragilidade do corpo, da mudança de casa, da depressão, a filha a convida a sair — não para o passeio, mas para a cena.
“Sou mãe da minha mãe”, diz Tertuliana. E, como tal, a convence com carinho. D. Maria senta-se em cena e assiste ao vídeo em que sua própria voz narra a vida que teve. O público também escuta, em silêncio. Ao final, a artista entrega a cada espectador uma agulha e uma linha. Um gesto pequeno, mas de enorme potência simbólica: a dificuldade da mãe em enfiar a linha é, também, a impossibilidade de continuar costurando a vida com a autonomia de antes. Quando o espectador falha (como aconteceu com quase todos), Tertuliana diz: “É assim que ela se sente”.
Ao final, uma moça consegue. A artista a conduz até o centro da sala, onde sua mãe permanece sentada. As duas se abraçam. A cena se encerra com esse gesto delicado — e profundamente restaurador.
Na impossibilidade de costurar, costura-se o tempo: o passado e o presente se entrelaçam, e o gesto ordinário ganha valor extraordinário. Como propõe Richard Schechner, a performance atribui um valor especial aos objetos — aqui, à linha e à agulha, que deixam de ser instrumentos domésticos para se tornarem metáforas do cuidado interrompido, da tentativa de reconexão.
Outro aspecto essencial dessa criação é o tempo simbólico: a ação performática não se guia por um tempo cronológico ou funcional, mas cria um intervalo onde diferentes camadas temporais coexistem. A dona de casa ativa e a idosa silenciosa habitam juntas a mesma cena. A memória da força se contrapõe à fragilidade do agora, e a linha entregue ao público sugere que, mesmo diante da impotência, ainda é possível tecer.
Na perspectiva de Schechner, a performance não é apenas representação, mas restauração — ato ritual que reencena e ressignifica comportamentos vividos. Aqui, o gesto de cuidar retorna transformado: é a filha quem leva a mãe pela mão, a coloca em cena, empresta-lhe voz, dignidade e escuta. O que se vê é o duplo cuidado: do corpo e da memória, da mãe e de si mesma.
Não se trata de uma encenação do cotidiano, mas de um atravessamento dele. A artista compartilha uma dor íntima e estrutural — que é sua, mas também de tantas outras mulheres: o envelhecimento invisível, a feminização do cuidado, a sobrecarga que se impõe às filhas mais velhas. Em um gesto mínimo, de linha e agulha, revela-se o tremor de um afeto imenso, tecido entre duas gerações.
Referências
PEREIRA, Antonia. A rede qualitativa da performance: uma proposta de análise das formas teatrais. Dissertação (Mestrado em Teatro) — Universidade Federal da Bahia, 1995.
SCHECHNER, Richard. Performance: teoria e prática. Tradução de Barbara Kirshenblatt-Gimblett et al. Rio de Janeiro: Edições Sesc SP; São Paulo: Cosac Naify, 2011.
LOPES, Tertuliana. Entrevista concedida por WhatsApp à autora, fevereiro de 2025
Maravilhoso nossa mãe cuidou de nos sempre do modo dela trabalhava pra não falta o basico alimentos nosso pai tbm era analfabeto mas pra calcular ninguém passava ele pra traz até tentou estudar a noite mas chegava mto cansado não ia pois serviço de carpinteiro era mto cansativo morreu com 69anos deixou o legado de trabalho respeito e sempre acredita que tudo é possível ESSA é a minha irmã com um texto LINDO PARABÉNS MANA
Trabalho muito bonito da nossa querida Tertuliana, uma performance de memória e afeto