Performance de Cáeu Alves Lima
Texto de Artur Dória
Se pensarmos a performance arte como um ato que é posto em relevo de forma a evidenciar certa maneira tanto de organizar quanto de metabolizar um pensamento em um determinado tempo-espaço, pode-se pressupor que toda performance parte de uma certa uma agitação visceral que se dá entre imagens que estão em um estado de colisão umas com as outras. Esse seria um modo de pensar a própria linguagem da performance como um ato limite capaz de aglutinar determinadas forças internas em confronto em um mesmo estado de presença, ainda que efêmero. Pode-se dizer então de um senso de urgência, de algo que precisa ser expelido, um transbordamento, em que a performance funcionar a transgredir as fronteiras de corpos em direção a outros corpos. Assim, se se pode dizer que a performance é uma arte de fronteira não é somente porque esta pode ser localizada na fronteira movediça entre as linguagens artísticas, mas porque se trata de um trânsito incessante – e decerto uma transformação ou transfiguração – entre estas próprias fronteiras. A performance, se situada dessa forma, pode então ser proposta como aquilo que não cansa de atravessar a fronteira de uma linguagem e outra, ela está e não está, ela é todo e qualquer movimento que não permite ser capturado de um lado ou de outro, é difícil fixá-la, mas seus rastros, mesmo que temporários, estão por toda parte, sugerindo e ou anunciando outros modos de agenciar a linguagem.
Na performance (Trans)vessia visual: bagaceirice em corpo (a, e) neutro (a, e), de Cáeu Alves, há uma sucessão de camadas de vida que se encadeiam tanto como travessias vividas e viventes quanto maneiras possíveis de se transpor determinados limites sociopolíticos. Sua performance se organiza em um ambiente imersivo deixando entrever tanto a multiplicidade de processos quanto os múltiplos processos que ele traz em seu corpo, em um encontro que faz pulsar linguagens a partir de um corpo afirmando a sua existência. É importante destacar isso de saída, porque, antes de tudo, é preciso dizer que Cáeu é um transmasculino e o Brasil é o país onde mais se mata pessoas trans. Dessa forma, sua performance, como um corpo conjunto e um ato vivente, é oferecido a pessoas trans, e seu propósito é trazer à tona coisas relacionadas tanto a sua própria vivência como se remeter a vivência de corpos trans, travestis, pessoas não binárias, pessoas de gênero indefinido.
Em um primeiro momento parece não haver uma ação propriamente dita, não que não exista um programa de ação, mas o que é colocado em jogo pelo performer é, antes de tudo, um ambiente onde estão conjugadas uma série de ações anteriores (coisas que ele fez outrora ou coisas que lhe ocorreram, ou ainda coisas que ele costuma fazer e que fazem parte do seu métier), de modo que toda a ação de Cáeu é apenas uma maneira de acioná-las, de torna-las palpáveis por meio de uma série de sutis dispositivos gestuais. Sua performance se completa, então, como um modo de estar e permanecer, um modo entre outros que ele encontrou de expor aquilo que seu corpo é; uma performance, nesse sentido, que é também um estado de duração de seu próprio corpo em outros corpos.
Isso pode ser melhor visualizado através do termo bagaceirice, presente no título que dá nome à performance e que Cáeu compreende como um alicerce conceitual de seu trabalho. Se, como assinala o performer Guillermo Gómez-Peña (2005), aquilo que não presta em outros contextos ou que não é conveniente para outras linguagens artísticas, pode prestar para a performance, bagaceirice, nesse caso, pode ser evocado como um exemplo dos mais concretos. Segundo Cáeu, o termo bagaceirice surge a partir da imagem de um “acúmulo de bagunças internas”; de outro modo, pode-se dizer de um acúmulo de bagaços internos. A imagem do bagaço, por sua vez, se refere àquilo que não pode ser aproveitado ou, se aproveitado, indica algo de má ou baixa qualidade, de pouco ou nenhum valor, que perdeu ou o que teve a sua função esgotada. Assim, ele vai se referir aos seus bagaços-bagunças e vai pensá-los como uma parte constituinte de si, ele não os descarta, pelo contrário, ele os aprofunda, entendendo-os como uma parte que agita e modela o seu movimento vital.
Não é coincidência, portanto, que pessoas trans sejam pessoas de corpos lidos socialmente como bagaços, não porque o sejam, mas porque se situam enquanto corpos dissidentes que escapam continuamente a qualquer enclave ou performance de gênero. Seus corpos acabam sendo taxados como desqualificados e descartáveis; são vistos, então, como corpos-bagaços, anomalias, restos de algo que um dia foi ou podia ser identificado como um “corpo”. Um corpo trans, nessa leitura, é um corpo-rasura que borra e transtorna os fundamentos daquilo que se compreende e define um corpo sob as raias de um padrão que responde a uma certa orientação sociopolítica (o corpo dito cis é o corpo predominante), tomado como uma certeza e ou uma solidez da qual não deve transpor, ou de outro modo, um corpo que é um território que só pode ser maculado se dentro de certos limites aceitáveis e sob rígidas condições.
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A performance ocorreu em uma sala fechada. Para os que chegavam, no breve percurso antes de acessar a sala, algumas palavras orientavam o caminho e o que iriam encontrar adiante. Na sala escura, em um canto, uma projeção com duas ilustrações que pareciam dançar alternando-se em um movimento digital. Cáeu está de pé defronte a estas projeções, ele está vestido com uma roupa preta e está posicionado sobre um tecido onde encontra-se a ilustração original. Ao largo do tecido, está um texto orientando a quem quiser intervir neste corpo com alguma inscrição, e para isso, estão disponíveis tintas e pincéis. Cáeu nada diz neste momento. Aos poucos, as pessoas se aproximam e escrevem nas partes do corpo de Cáeu que estão disponíveis: braços, pernas e rosto. Quando terminam, Cáeu se levanta e se dirige a um banco posicionado as suas costas e que também está de frente para a projeção. Ele se senta no banco e lê o que as pessoas escreveram em seu corpo. Em seguida ele diz um texto, logo depois fala algo em libras, e por fim, canta uma música.
Estamos diante de uma performance e por isso mesmo também é teatro, música, desenho, tudo isso posto em um nó relacional pronunciado por uma disposição visual de múltiplos elementos que coincidem e são espacializados em pequenos atos agenciados pelo corpo do performer. Isso se dá porque tudo o que ali está, de uma maneira ou outra, são partes ou parcialidades do corpo do performer, não são partes desmembradas, mas ampliadas e prolongadas, partes que narram uma parte da história deste corpo sob diferentes perspectivas sem a obediência a uma hierarquia ou cronologia. Com isso, ele evidencia traços de sua história em conexão com diversas outras histórias tão similares quanto singulares, e ao atestar e afirmar a sua existência enquanto história viva e em constante fazer, presta homenagem a quem o antecedeu e a quem o acompanha sem deixar de saudar a quem ainda estar por vir.
(Trans)vessia visual: bagaceirice em corpo (a, e) neutro (a, e) é elaborada a partir de uma ilustração feita por Cáeu tendo seu corpo como modelo: “sempre que eu penso meu corpo eu penso através do desenho”. Um corpo neutro, um corpo-tela, aquilo que se coloca à disposição das linguagens. “Porque não fazer isso numa panada e transformar isso em um figurino da performance?”, ele se pergunta. A performance, dessa forma, vai ser caracterizada por ele como um modo de expor em seu “corpo-tela traços bagaceiras” que o “atravessam-transvessam enquanto pessoa trans não-binárie”.
A ideia de um corpo-tela, por sua vez, pode nos remeter, em parte, a algumas performances experimentadas nos anos 60 ou 70, em especial, na sua relação mais estreita com a pintura, quando esta começa a romper com os limites do quadro. O corpo não mais executa uma determinada ação sobre um objeto, é o próprio corpo que se transforma em um espaço de intervenção (nesse caso, um espaço-tela), agindo de modo a criar condições para que ele seja o próprio espaço de ação; agir para ser agido. Pode-se pensar, por exemplo, nas Antropometrias, de Yves Klein, uma série de pinturas em que modelos nuas eram transformadas em pincéis vivos e inscreviam suas silhuetas em telas em branco de acordo com as indicações do artista; bem como algumas das ações do Grupo Gutai ou mesmo dos Acionistas Vienenses, todas estas, de uma maneira ou de outra, guardam em comum entre si as diversas experiências pelas quais a pintura fora transposta de modo a deformar ou repensar o próprio corpo, de implicar o corpo diretamente no espaço, de transgredir os limites espaciais que reduziam a interação direta entre corpo e suporte; tratava-se, em muitos casos, de ir além e pensar a si mesmo intervindo visualmente nesse corpo e investigar formas de rasurá-lo ou imprimi-lo em determinado espaço, é o corpo, nesse sentido, que absorve ou incorpora o suporte.
Baseado neste desenho, a performance se apresenta com grande acuidade visual, o reflexo de uma vivência que ele disse ter e trazer desde a infância. Assim, ele tece uma visualidade que é consumada por uma presença que se espraia e alterna entre cores vivas e transita por imagens gestando possibilidades visuais a partir de um corpo trans, ou de tudo aquilo que um corpo trans pode contar e conter em si mesmo. A performance assume um caráter de instalação: é uma maneira dele não apenas demarcar seu território, mas efetivamente retomá-lo. Ele busca e trabalha uma ambientação que pode ser dita como imersiva, mas não necessariamente para aqueles que o testemunham, a imersão é dele. O que se vê, portanto, é um meio condensado de múltiplas narrativas tecidas em um processo atravessado e transvessado por potências de outros corpos e corpos outros que se fazem presentes em meio a sua presença.
Tudo isso se consolida na miscelânea de referências que compõem o seu ciclo pessoal, formado majoritariamente por pessoas trans. São artistas da cultura ballroom e do movimento de Themônias de Belém do Pará, além de uma série de artistas que transitam entre diversas linguagens artísticas. Ele cita, por exemplo, Nefertiti Souza, Glendha Melissa e Poli Nascimento, artistas trans de Alagoas, bem como a artista cearense Gabriela Barros Rodrigues. Há também uma ligação muito forte com a cantora Liniker, uma mulher trans. O seu nome, Cáeu, surge a uma música dela, que carrega no título esse nome: “sempre em minhas performances eu costumo cantar uma música da Liniker”, ele aponta. Aliás, o texto que performa, antes de começar a cantar, é criado a partir de algumas das músicas da Liniker.
O que está posto são seus trânsitos e percursos viventes, ele mostra a si mesmo em performance compondo qualidades visuais a partir de bagaços que vai expelindo ou rastreando em seu corpo em meio a um manancial de recursos que tem à disposição. É certo que o bagaço pode ser referido como aquilo que resta, e estes restos são coisas que preferimos ignorar, por outro lado, contudo, o bagaço é também aquilo que extrapola, e portanto, é algo que não pode ser pensado em termos ou padrões convencionais. É por isso que quando Cáeu realiza sua performance, ele faz isso não apenas por ele mesmo, para trazer à tona os seus restos, mas para criar com estes restos-bagaços um espaço onde é possível fazer “vibrar esse espaço para outros transmasculinos ou outras narrativas trans”, como ele destaca. O que orienta e o interessa nesse fazer é expor e organizar em um trânsito entre linguagens e saberes que o atravessam, atravessaram ou o estão atravessando. Dessa forma, sua performance é uma espécie de trama visual entre uma multidão de elementos dissidentes que foram ganhando forma dentro dele mesmo e que agora encontraram um meio de sair e de se afirmar.
Um aspecto crucial que se impõe como o cerne de sua performance, é a descrição desta por ele como um “grito exausto”. Um grito, portanto, que se coloca em direção oposta àquela “que a invisibilização, a violência, o desrespeito e o apagamento têm sobre a identidade trans”. A ideia de um grito e exausto, se impõe como algo que reivindica uma existência, funciona como uma expulsão, um descarrego, um modo impassível e abrupto de ocupar um espaço-tempo, uma expressão de força quando todos os meios parecem esgotados, um dado indomável da vida manifesta; é o grito, assim, como uma força intempestiva, um ato de demarcação de si, aquilo que só é porque não se conforma em ser tão somente bagaço interno, reduzido a si mesmo. No entanto, apesar de caracterizar como um grito, sua presença é dotada de uma suavidade, o que não é de maneira alguma uma contradição. O grito de sua performance se introduz de maneira quase residual – o que não o destitui de força – e aparece como uma explosão visual, ou seja, se dá “ver” por outros sentidos, e nesse sentido, ouve quem pode de fato ouvir.
Ele nos desperta a atravessar (ou atra-versar) o movimento contínuo de sua travessia. É um chamado que acontece de maneira discreta até, como um psiu, tal qual a música de Liniker em que ele interpreta ao final, em mais uma faceta sua, ele que caminha por entre artes, concebendo, por fim, e demonstrando a importância da palavra em sua dimensão ampliada, nesse caso a palavra cantada (cantada também em libras), não reduzida ou subordinada à palavra escrita. Essa possibilidade de explorar a palavra em outros registros é importante porque reverbera naquilo que Cáeu vai dizer – ainda que se referindo ao teatro, mas sendo algo que pode ser expansível também à performance – que estes são momentos em que ele pode falar sobre o que o atravessa de maneira profunda.
Assim, neste espaço proposto, em meio a esta densidade de presenças, Cáeu promove uma colagem de si que reverbera em outros, outras, outres, e mais, mas não apenas, já que se trata de um mosaico, uma conjugação tanto quanto uma conjuração de corpos imprevisíveis em um espaço permeado de multiplicidades trans. Um espaço trans em que os corpos são intensamente refeitos a partir da feitura do corpo de Cáeu colocado em estado de performance.
REFERÊNCIAS
LIMA, Cáeu. Em conversa com Artur Dória em março de 2025. Não publicado.
GÓMEZ-PEÑA, Guillermo. Em defensa del arte del performance. Revista Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 11, n. 24, p. 199-226, jul./dez. 2005. Disponível em https://doi.org/10.1590/S0104-71832005000200010 Acesso em: 27 jun.2025.
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