Pelo que Sou

Pelo que Sou

Performance de Danielle Cascaes
Texto de Karine Jansen e Danielle Cascaes

Eram 15:30, quando a campainha tocou. Camila Vieira chegou para o que poderia ser mais um ritual de embelezamento das mulheres, desses que ocorrem nos quatro cantos do mundo. A depilação pode se dar por diversas técnicas: por flata ou linha, comum entre os povos árabes; por pinça, usada nas sobrancelhas e nos acabamentos; por pomadas ou por cera quente, e, agora, temos a opção do laser, bem menos dolorida, mas nem sempre acessível financeiramente a todas as mulheres. Definitivamente, não se tratava apenas de uma sessão depilatória, mas sim de um ato performático no qual, Danielle iria se submeter e refletir sobre a ação de arrancar os próprios pêlos.

“Não lembro se alguém me disse que eu tinha que me depilar, eu vim de uma família de mulheres, vi minha mãe fazendo, depois minhas irmãs crescidas submetidas a esse ato e então chegou a minha vez. Como algo comum, necessário, cultural”, diz a performer (CASCAES, 2020).

O lugar da performance foi na casa de Danielle, em seu quarto, em sua área de conforto. Antes, pensou muito em fazê-la em público, mas o pudor não o permitiu. Com isso, o público foi convocado por meio da câmera fotográfica de sua melhor amiga, Gabriela Morgado, que a conhece desde a infância e já a viu despida. Danielle ainda pensa em fazer a performance em público, mas seus pudores vão além da nudez, pois se envergonha de ter seus pêlos visíveis para as pessoas.

A performance possuía uma regra imposta pela performer: não poderia haver palavras, nenhuma fala, nenhum gemido de dor, nenhuma comunicação entre as pessoas. Para garantir esse processo, ela colocou sobre os lábios uma fita adesiva de lacre de embalagens.

O roteiro da performance começou. Podemos dizer que ele tem duas abordagens: uma que vai dos lugares onde a dor é mais suave, até onde ela se intensifica. A outra estaria ligada ao voyeurismo, onde começaria pelas partes do corpo que socialmente são visíveis, até as partes do corpo que não são mostradas ao público, são íntimas, compartilhadas somente com aquelas pessoas em quem confiamos e que amamos. As técnicas usadas para a depilação foram a pinça e a cera quente. Começando pela sobrancelha, em seguida o buço, axilas, perna, virilha lateral e a vagina externa e então… a vagina interna não foi mais possível continuar. 

A esteticista começou pelas laterais, e na segunda passada de cera, alguns poros da minha pele começaram a sangrar e a doer bastante. Minha pele se irritou muito e ficou muito vermelha, e a explicação que recebi foi que os pêlos estavam mais grossos por conta de lâminas de barbear e tesouras. A esteticista resolveu parar por aí, pois quanto mais para dentro ela fosse, mais sensível minha pele se tornaria e o risco de sangramento era maior (CASCAES, 2016)

Para além do sangramento, na entrevista com a artista, ela relata que pegou na mão de Camila pedindo para parar, pela dor, e pelo turbilhão de sensações que invadiram seu corpo neste momento. A performance de Danielle queria expor essa forma brutal que nos faz exercer o papel de mulher na sociedade. As formas que nos cobram, os padrões femininos de beleza. Para ela, deixar o corpo sem pelos é igualá-lo ao corpo infantil, pois somente as crianças não têm pelos no corpo. Por que mulheres precisam infantilizar seus corpos? Por que naturalizamos essa infantilização? Por que ignoramos a pedofilia como um mal horrendo na sociedade?

A segunda parte da performance consistiu na exposição de fotos do ato, juntamente com um texto sobre pedofilia, exposto a seguir. Junto às fotos, existia uma caneta e o público tinha a possibilidade de interferir nas fotografias. E o fez, se pode ver nas fotografias.

O público acabou atribuindo aos objetos da performance alguns símbolos considerados pela artista como bastante pertinentes, a exemplo de como a cera quente foi considerada como o machismo, a espátula o falo e, a fita, a mordaça.

Danielle continua se depilando, mas não deixa de pensar nesse turbilhão de valores que invadem seu corpo a cada pelo arrancado! Ela lembra-se da primeira vez em que tirou seus pelos, aos doze anos. Foi com lâmina de barbear, os pêlos da axila. Se cortou duas vezes, mas continuou passando a lâmina sobre a pele. A axila empolou, coçou, sangrou, mas ela continuava cortando seus pêlos uma vez por semana. Aos quinze, descobriu uma técnica mais dolorosa, porém, que feria menos: a cera quente. Desde então, passou a arrancar os pêlos da axila utilizando essa técnica, sempre que visitava um salão de beleza ou clínica de estética.

Aos poucos, a cera foi se espalhando pelo corpo de Danielle. Depois da axila, veio a sobrancelha, o buço, a perna, a virilha, a vagina, o ânus. Ela sentia como se estivesse submersa em cera quente. Às vezes, a cera estava quente demais e queimava a pele antes de mutilá-la. A dor varia dependendo do lugar onde os pêlos estão sendo arrancados e, sem dúvidas, o local mais dolorido é a vagina, por ser o mais sensível. Danielle começava a ficar nervosa antes de fazer a depilação pubiana. Acontece que, quando fica nervosa, a parede interna e externa de sua vagina cria placas vermelhas e doloridas, fruto de uma espécie rara de candidíase nervosa. Por vezes, a candidíase se manifestava por conta do nervoso que ela passava antes de fazer a depilação pubiana, mas, mesmo assim, ela o fazia. Nessas ocasiões, doía muito mais, pois o local sensível havia sido ferido previamente. Era uma ferida causada pelo o que o iria ferir, antes de feri-lo.

Depois de passar por essa experiência algumas vezes, Danielle começou a se questionar sobre os motivos pelos quais ela praticava a depilação. Mas, apesar de toda reflexão, ela não conseguia se desvencilhar completamente do ato de se depilar. Mas por quê? Por que ela continua se causando dor propositalmente? Por que ela sente vergonha dos pelos de seu corpo? Por que ela sente que é algo que deve fazer? Por que ela fica constrangida em ser vista com pelos em público? Por que ela não se sente atraente e desejada, a não ser que esteja com o corpo todo liso? Wolf (1992) parece ter algumas respostas:

Desde os primórdios da história até pouco antes da década de sessenta, o sexo das mulheres lhes causava dor. (…) O amor machucava, o sexo podia matar, o doloroso trabalho da mulher era um trabalho de amor. O que no homem seria masoquismo, para a mulher significava a sobrevivência. (…) O sexo começou a perder seu ferrão em 1965 (…), quando os costumes sociais em transformação e a defesa da sexualidade feminina por parte do movimento das mulheres começaram a tornar imaginável que o prazer que o sexo proporcionava às mulheres poderia superar de forma final e definitiva da dor. Os fios do sexo e da dor nas mulheres começavam afinal a se separar (WOLF, 1992, p. 291)

Com essa estranha e recente ausência da dor feminina, o mito colocou a beleza em seu lugar. Pois, tanto quanto as mulheres pudessem se lembrar, alguma coisa em ser mulher sempre doía. (…) Hoje, o que dói é a beleza. WOLF, 1992, p. 292).

A beleza dói porque algo precisa doer na mulher para que ela seja mulher, ou pelo menos é o que lhes é dito. O próprio conceito de beleza foi criado para causar dor às mulheres que não se adequassem ao padrão. A performer não consegue se desvencilhar de atitudes autoflagelantes pois é algo que está intrínseco nela, algo extremamente difícil de se romper completamente. Cada vez que Danielle se depila, ela passa muito tempo pensando sobre os motivos para tal. Reflete muito, e apesar de saber que é um ato autodestrutivo, não consegue deixar de fazê-lo.

Porém, a reflexão a tem ajudado a praticar a depilação cada vez menos. Ela espera conseguir, um dia, não precisar mais se submeter a atos tão cruéis. Ou então, espera conseguir entender que não preciso se depilar, que pode se depilar ou não, sem se sentir culpada por um ou outro, pois atualmente, se sente culpada por não se depilar, mas também se sente culpada quando se depila. É isso que que a sociedade patriarcal almeja: controlar os corpos femininos, não importa as suas escolhas.

REFERÊNCIAS

CASCAES, Danielle. Entrevista concedida a Karine Jansen em 05.06.2020. Não publicado.

CASCAES. Danielle. Memorial da Performance Pêlo que Sou 2016. Não publicado.

WOLF, Naomi. O mito da beleza: Como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. 

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