Performance de Isabella Valentina Conceição Barros
Texto de Raphael Andrade
Nos dias atuais, podemos presenciar um processo híbrido, dialógico e interseccional das formas do fazer artístico. Ao nos depararmos com o campo da performance art, no que tange às experimentações performáticas, vislumbramos convergências e divergências de olhares e conceitos, demonstrando que o desejo de ressignificar e inovar estão a todo momento presentes no trabalho artístico performático contemporâneo. Digo isto porque, embora busquemos definições a respeito do que é esta ação chamada performance (que, por sinal, já nasce hibridizada), a todo momento ela se mostra como uma categoria artística de conceitos fugidios e elásticos, que se transforma de acordo com a conjuntura em que a (o) performista intenta apresentar sua arte para um público.
Ao trazer esse parágrafo introdutório, pretendo externalizar o que pude presenciar na performance Por que me esqueceste? (2016) e na entrevista não-diretiva feita com a performer Isabella Barros. A performance em questão é alicerçada por um devir (TRANS)DESTINO, que traz na visualidade um conjunto de simbologias e ações que poderiam facilmente levar à uma confusão entre Teatro, Performance e Ritual; mas, que, sob um olhar mais aprofundado, revela uma ligação rizomática, não hierárquica entre todos esses campos. Creio, que, melhor do que tentar explanar qual conceito melhor se encaixa no ato artístico, o mais importante é apresentá-los. Portanto, prossigo a partir da noção de ritual
Ao me referir ao ritual, emprego o conceito do antropólogo britânico Victor Turner (1920-1983), desenvolvido no campo da antropologia da performance, Turner propõe uma análise do drama como análogo à vida social. Nesta perspectiva, concebe a noção de liminaridade como a fase principal do ritual de passagem, pois, no estado liminar, o indivíduo encontra-se entre categorias sociais e identidades pessoais Desprovido da identidade anterior, mas ainda não lhe tendo sido conferida a nova identidade que receberá ao final do ritual, o estado liminar é um momento de transformação, uma mudança de condição/identidade. No caso da performance em questão, essa mudança reflete o processo de transição de cisgênero para transgênero da própria performista.
Para começar a descrição da performance supracitada, faz-se necessário voltarmos no tempo: dia 28.09.2016, pouco mais de 18h30. Isabella demorara 22 anos para viver a experiência liminal consigo mesma, mais especificamente 8.153 dias, de forma que, naquela data, Rafael Barros (nome registrado no nascimento) fez seu mais potente rito de passagem, vivenciando um processo transitório de “morte” social, para, em seguida, “renascer” e reintegrar-se à estrutura social, mas, desta vez, destituído do substantivo masculino, concedendo, assim, a passagem para a Isabella Valentina Conceição Barros, que a todo momento pedia clemência e pedia para ser liberta: “Estou aqui! Deixe-me sair! Por que me esqueceste?”
Portanto, Isabella que já dominava os pensamentos de Rafael desde tenra idade, escolhe a ação performática como ritual de passagem. Esta, como ela própria faz questão de explicar, “não é uma metamorfose, mas, sim, um devir” alicerçado desde o primeiro semestre do curso de Licenciatura em Teatro pela UFPA, quando, ao deparar-se com a disciplina “performance”, ministrada pela Prof. Dra. Karine Jansen, Isabella soube que realizaria o rito de passagem na ação performática.
Na entrevista realizada no dia 08.06.2020, Valentina explica o motivo de ter demorado tanto tempo para aceitar-se como mulher trans:
Eu fugia da homossexualidade. Eu tinha desejo de pessoas pelo mesmo sexo, tinha a questão da androginia, gostava de me vestir e me maquiar como mulher, porém achava aquilo tudo errado. Também pela questão da religião, por ser de família católica, sabe? Do costume dessas coisas… eu repudiava. Entrei na igreja, fui coroinha e quase entro no seminário. […] Tudo isso era para fugir da homossexualidade. (BARROS, 2020)
Vejamos que, a religiosidade de Isabella está ligada à culpabilidade que a igreja impõe às pessoas que fogem do padrão de heteronormatividade. Porém, ao adentrar na academia, Isabella começa a pesquisar sobre a transexualidade e a aceitar-se como mulher trans. Além disso, existe o fazer artístico que perpassa seu devir e externaliza a percepção do próprio corpo como cárcere, tal qual se viu na ação-ritual-perfomática objeto deste texto.
O local escolhido para a performance foi a sala 05, da ETDUFPA. Rafael Barros começa a ação no pátio da referida escola, com camisa social, chapéu panamá, gravata e bermuda em tons escuros, como se já estivesse preparado para o seu próprio luto. Na mão, segura uma mala com a seguinte placa convidativa: “- Quer saber o que tem dentro dessa mala? Siga-me!”
E assim o fizemos. Antes de adentramos o recinto, pudemos ver que havia na porta fotos de Rafael e dois manequins vestidos com roupas designadas como masculinas e, ao passo que adentramos a sala, percebemos uma arena em forma de quadrado e uma delimitação no chão em forma de encruzilhada, feita com fitas e pequenas velas depositadas dentro de garrafas pets coloridas em formato pontiagudo. Na visualidade, era perceptível que a performista pensou em tudo milimetricamente e de forma excessiva, conforme afirma ela própria: “A minha performance tinha muitos objetos, por ser exagerada! Meu exagero é levar para a cena muitos objetos: luz, sons, balões, mala, espelho, diário, make-up, figurinos […]”. (BARROS, 2020. Grifo do autor).
É interessante observarmos a palavra cena referida pela performer, pois podemos considerar que, no trabalho de Isabella, uma linha tênue separa o fazer artístico teatral do performático, sobretudo quando Isabella utiliza a ação representacional de um personagem no começo do ato performático, criando, dessa maneira, um universo ficcional, que vai de encontro com alguns conceitos que especificam o que seria a performance arte, pois:
Num sentido mais específico, o performer é aquele que fala e age em seu próprio nome (enquanto artista e pessoa) e como tal se dirige ao público, ao passo que o ator representa sua personagem e finge não saber que é apenas um ator de teatro. O performer realiza uma encenação de seu próprio eu, o ator faz o papel de outro. (PAVIS, 1999, p. 284)
Certamente os (as) performistas não tem necessidade de agir como um personagem em cena e Valentina até rompe com a ação de representar outro no decorrer da performance. Contudo, tais ações não são uma regra, sobretudo, atualmente, quando as especificidades artísticas se hibridizam e se nutrem a todo momento.
Já no que tange o termo performance, visto tanto no âmbito cotidiano e ritualizado ou no fazer artístico performático, pode ser analisado por um:
comportamento que requer a presença física de seres humanos ou animais especializados ou treinados que demonstram certa habilidade frente a uma audiência […] implica em desempenho de um papel (perspectivas artística e social) frente a observadores, convocados também a integrarem e participarem da performance. (CARLSON, 2010, p. 12).
Se pararmos para pensar, nossa rotina é marcada por variadas repetições e rupturas de rituais cotidianos, ou melhor, de “rituais performáticos”, como diria Schechner (2012); ou como gosto de exemplificar com o prefixo “re”, que detém a condição de repetição, isto é, REperformatizamos nosso cotidiano, nossa vida. É o que faz a performer Valentina no ritual-cena-performance, ao transportar e desempenhar o papel do Rafael, até a sua transição para Isabella.
No ato, também há um valor especial atribuído aos objetos, conferindo um valor simbólico e ritualístico ao salto alto retirado da mala, ou ao despir-se da roupa utilizada até então pelo Rafael e vestir-se com asas de organza que simbolizam a liberdade, além do espelho pendurado no centro da parede, diante do qual desempenhava-se o cerne do ato, pois segundo a artista: “No momento em que eu fico em frente ao espelho, eu fico aliviada, pois foi quando eu comecei a sentir emoções (chora), depois que eu grito (olhando para o espelho) eu renasci. A partir dali eu começo do zero” (BARROS, 2020).
A performance também se relaciona com os espectadores, pois a performer chama duas pessoas de sexos opostos para sentarem-se na cadeira e interage com eles. Nesta ação, para a performer, cada uma dessas pessoas representa o gênero a elas atribuído e o seu próprio reflexo diante deles.
Por fim, Isabella finaliza a ação performática com mais uma subversão, pois quebra o caráter efêmero da performance, ao transportá-la para a sua vida em uma:
performance repetida. Essa repetição é a um só tempo reencenação e nova experiência de um conjunto de significados já estabelecidos socialmente; e também é a forma mundana e ritualizada de sua legitimação. Embora existam corpos individuais que encenam essas significações estilizando-se em forma do gênero, essa “ação” é uma ação pública. Essas ações tem dimensões temporais e coletivas, e seu caráter público não deixa de ter consequência (…) (BUTLER, 2003, p. 200).
Sabendo que as consequências de ser artista e professora trans é um devir árduo e que implica em repetir e ressignificar os significados sociais, Isabella carrega em seu corpo a potência transgressora e libertadora de repetir o ritual de legitimação da sua identidade de gênero presente no país que mais mata transexuais no mundo.
Depois do ato performático do dia 28.09.2016, Rafael Barros foi esquecido e Isabella passou a ter sua identidade social reconhecida por todxs. Por que me esqueceste?, ritual de passagem criado por Isabella, foi reperformada durante a escrita deste texto, que se concluiu 3 anos, 8 meses e 16 dias depois da estreia. Sem sombra de dúvidas, essa performance é um dos mais potentes trabalhos realizados a partir de uma disciplina e continuará reverberando por todos os dias do seu (TRANS)DESTINO, assim como, de quem terá a sorte de presenciar a força que detém o teatro-performance-ritual da Mulher Trans que não será mais esquecida – Isabella Valentina.
REFERÊNCIAS
BARROS, Isabella. Entrevista concedida a Raphael Andrade em 08.06.2020.
BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
CARLSON, Marvin. Performance: uma introdução crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG. 2010.
PAVIS. Patrice. Dicionário de teatro. Trad. J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 1999.
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