Performance de Ana Paula Castro
Texto de Karine Jansen e Raphael Andrade
QUEM PARIU MATEUS QUE O EMBALE! reverbera para quem ouve exatamente assim, no imperativo e em caixa alta, desvelando a expressão popular que determina a solicitude que carrega a mãe (e, veja bem, em que parte o genitor entra neste contexto?) ao deparar-se com um sistema familiar e social que emprega tal termo apenas para quem poderá parir Pedros, Marias, Mateus e Joanas.
E é nesta expressão que carrega um simbolismo um tanto déspota e julgador, que a performer estudante de teatro Ana Paula Castro concebe novamente, mas, desta vez, a partir da simbiose de uma performance solo-acompanhada, tal qual no seu cotidiano vive a condição de mãe solo e atravessa dias que podem ser denominados de “dores de parto”, pois trazem solidão, pressão, assoberbamento e, sobretudo, FORÇA! Uma força viva, mas que tem limite, esgota-se.
Parece um paradoxo, porém é no esgotamento que a artista ganha a força motriz e a reverte no fazer artístico performático, ao performar a própria realidade, num ritual todo humano e carregado de simbolismo, que poderia ser visto tanto na perspectiva da análise performática cotidiana como na da observação artística, revelando que performances “são todas feitas de comportamentos duplamente exercidos, comportamentos restaurados, ações performadas que as pessoas treinam para desempenhar (SCHECHNER, 2003, p. 27).
Essas ações são vividas por Paula conjuntamente com seu filho Pedro, que significa “rochedo”, “pedra”- não aquela dita por Drummond, que fica no meio do caminho, mas, sim, a pedra que a acompanha desde o ventre, e que, hoje, pesa 22 kg e, mesmo sendo pedra, nunca será um fardo. Todavia, um filho sempre é uma pedra preciosa para a mãe, em constante lapidação, com necessidade de atenção e, no caso de Pedro, de afabilidade redobrada, pois é portador de transtorno do espectro autista – TEA. A propósito, faz-se necessário considerarmos que autismo é uma “síndrome comportamental com etiologias múltiplas e distúrbio de desenvolvimento, algumas vezes combinado com dificuldades de linguagem e alterações comportamentais” (LOPES, 1997).
O peso carregado por Ana Paula e que impera na vida solo da mesma e, para o qual, não cabe eufemismo – educar e cuidar do seu filho autista, por si só já consome muito de sua energia. A performer a mesma acredita que tal peso poderia ser caso houvesse políticas públicas de inserção de pessoas autistas, mais especificamente, na escola.
Partindo desta análise, ou melhor, (PAR)INDO por essa visão, o PESO- substantivo abstrato que não se pode ver, tocá-lo, lustrá-lo, pulsa dentro da alma de Ana Paula, que se faz ânima tecida e repartida para Pedro todos os dias, mesmo que distraidamente. E, por ser alma, pode ser repartida em forma de performance artística.
Paula e Pedro chegam às 19h ao prédio da Escola de Teatro e Dança da UFPA, suados, vieram de bike, como de costume. Paula cheia de demandas e, Pedro, repleto de desejos. Imediatamente, começam as providencias da ação performática: mesa, cadeira, cordas, computador, projetor, extensão, bocal. Neste intermeio, Pedro corre, se esparrama entre os bancos, entre as colunas, agarra a perna da mãe, sobe no colo de um conhecido, remexe na mochila e a ação vai acontecendo, lentamente, mas contínua, frequente.
Alguns ajudam-nos, outros conversam, observam, até que um vídeo aparece na parede do pátio central da Escola. São cenas cotidianas, a água do chuveiro, a escolha das peças íntimas, o copo de café a partir do dispositivo videográfico preso próximo ao seio que amamentou Pedro. Falando em Pedro, ele brinca na sala e aponta para as letras. Logo em seguida, o vídeo trilha a caminhada feita de bike por ambos: os carros, imagens externas da escola, das aulas de teatro. E lá está Pedro nas aulas, sorrindo e abraçando a Paula. Essas imagens repetem-se durante toda a performance que dura cerca de quatro horas.
Em frente ao vídeo com flashes do dia-a-dia de Paula e Pedro, ou melhor, Pedro-Paula, temos uma rede verde – Quem Pariu PEDRO que o Embale! Com a rede, a frase ganha uma certa leveza, ou talvez Paula ganhe uma grande aliada para embalar, pois a rede é alta tecnologia para esse fim. Embala tristeza, cansaço, alegrias, desilusão, esperança, tempo e solidão.
Diante do peso que é ser mãe solo de um menino autista de três anos, Paula tem uma estratégia diária que é embalá-lo na sua rede verde. Pedro é metódico, tem que ser a rede dele. E a rede dele é verde! E ela estava lá na performance, como testemunha desse ato diário. E assim Paula o fez por diversas vezes durante essas quatro horas, tal qual na vida.
Outra ação importante de “QUEM PARIU MATEUS QUE O EMBALE” é a educação. E Paula cuida das duas: a dela e a de Pedro. Portanto, durante a performance, ela passou horas em uma mesa preparando o relatório para a disciplina Performance, enquanto executava a mesma. Eu preciso estudar! Eu preciso trabalhar! Ter um emprego para criar Pedro, pois QUEM PARIU MATEUS QUE O EMBALE! Nesse sentido, a performance e a condição pessoal de Paula tornam-se política! Ah, não podemos esquecer, que isso reverbera em todas as mães da ETDUFPA!
Ser mãe solo é uma condição social que se impõe e não existe um amparo institucional para as jovens nessa condição. O auxílio-creche previsto não cobre os cursos noturnos pois não existem creches que funcionem à noite. Ser mãe na ETDUFPA é uma militância, precisa-se conquistar espaços, direitos e respeito afinal, QUEM PARIU MATEUS QUE O EMBALE! Não é o que dizem?
Pedro teve fome! Alguém o levou até a cantina para lanchar enquanto Paula trabalhava no relatório, lia textos para fundamentá-lo. Observava Pedro. Pedro cansou, pediu a rede, embalou-se por um longo tempo, enquanto Paula pensava sobre o próximo parágrafo do relatório. E na solidão a dois, sem palavra nenhuma dita ao público presente, ressoa a voz que a palavra do poeta espera, mas, que, calada, muitas mães a reconhecem. E no calar da noite, nascem pequenas-grandes revoluções a PAR(t)IR da potência da sua performance no espaço reconfigurado pelos dois: PEDRO-PAULA ou PAULA_PEDRO? Que parece o fardo de todo o planeta terra, que parece rochedo, que parece cada um de nós nascendo e carregando as pedras pelo meio do caminho.
REFERÊNCIAS
LOPES, Eliana Rodrigues Boralli. Autismo: Trabalhando com a criança e com a família. 2. ed. São Paulo: Edicon, 1997.
SCHECHNER, Richard. O que é performance. In: O percevejo – Revista de teatro, crítica e estética. Ano 11, nº 12, 2003, Departamento de Teoria do Teatro, Programa de Pós Graduação em Teatro, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
Sensível e sem romantizar a relação mãe e filho. Obrigado Carga Viva por imortalizar este trabalho.
Ficou lindo. Emocionante, parabéns!
Muito grata por toda a dedicação
Parabens, pelo seu duplo trabalho de mãe e aluna!!!!
Obrigada Ana pelo partilha desse parto artístico. Certamente, trata-se de um impulsacionador uterino de contracoes que ainda reverbeva no canto, no embalo.