Performance de Neire Lopes
Texto de Neire Lopes e Cláudia Gomes
No ano de 2016, Neire Lopes entrou na Universidade Federal do Pará – UFPA, no curso de Licenciatura em Teatro. Uma escolha consciente, de alguém que entende a importância da Arte, especificamente do Teatro para a vida do ser humano.
Neire, mulher com mais de 50 anos existência, satisfeita por realizar seus planos, certa de que, estando entre os colegas do campo das Arte Cênicas, a idade não faria diferença, logo percebeu que, como em todo lugar, também ali, certos discursos são meramente palavras ditas, pois as ações nada têm a ver com eles.
Ela começou a sentir na pele o ageísmo travestido de ‘brincadeiras” que deixavam bem claro o incômodo que a presença de uma velha causava. Quando, por exemplo, eram referidos fatos antigos, logo ouvia; “olha Neire isso é do teu tempo” ou “desse tempo a Neire deve saber” ,”Isso é velho a Neire deve saber”, tudo dito com bastante sarcasmo, enfatizando a idade como sinônimo de decadência. Esse incômodo era ainda maior quando ELA, a velha, conseguia acompanhar as atividades físicas que os autores das “brincadeiras” não eram capazes de realizar.
Entre eles, uma jovem que se dizia oprimida por ser gorda. Embora sentisse a intenção, Neire nunca deixou que tais gracinhas lhe tirassem o foco, que era fazer e concluir o curso de Licenciatura em Teatro.
No ano de 2017, Neire ingressou como bolsista para o Projeto de Extensão Teatro Memória Música e Poesia na Melhor Idade. No projeto, ouvia muitos depoimentos das participantes com o mesmo teor, contendo frases como por exemplo “você está muito velha pra isso”, “seu tempo já passou “, “ridículo você querer voltar a estudar agora” , “quer dar uma de mocinha, velha assanhada”.
Nesse mesmo período iniciou a disciplina Performance, ministrada pela professora Karine Jansen. Nessa disciplina, alguns artistas consagrados da performance foram estudados nos encontros semanais, para, que, em seguida, fosse apresentada uma performance criada por cada aluno /aluna, como trabalho final da disciplina.
A partir de tantas evidências do incômodo que causa a velhice, Neire percebeu que tinha material suficiente para criar a sua performance, apoiada em Schechner (2006) e na compreensão da performance como um repositório compreensivo de conhecimento e um veículo poderosíssimo para a expressão das emoções.
Assim, a performance de Neire começou a ser construída com os elementos: criação de partituras e figurino, objetos cênicos, maquiagem, local, tempo., Diante de todo o contexto, a performance foi intitulada “Senhora do Tempo”. Trazia a fala ENGASGADA na garganta de muitas mulheres que, por medo de serem taxadas como “a velha” deixam de realizar seus desejos, suas vontades, ainda que tenham motivos fortíssimos para, só agora, como velhas, correrem atrás de seus sonhos
Há alguma coisa a ser dita que não se pode dizer: não é necessariamente um escândalo, por ser algo bastante banal – uma lacuna, um vazio, uma área que se esquiva da luz porque a sua natureza é a impossibilidade de ser trazida à luz, um segredo sem segredamento cujo selo quebrado é a própria nudez (BLANCHOT, 1971, p. 152).
A performance inicia-se na esquina da Av. D. Romualdo de Seixas com a Rua Jerônimo Pimentel, em frente ao prédio da Escola de Teatro e Dança. Neire olha a escola e a rua, vestindo um manto vermelho com caimento que acompanham e dão liberdade aos movimentos, com mangas compridas, largas, com detalhe em veludo e abertura frontal, deixando à mostra um corpo esteticamente modelado por um espartilho vermelho que acentua as formas.
Para Castro (2013, p. 193), com base nos trabalhos de Abramovic, o corpo do artista/performer é “um campo de interferências, ou melhor, um veículo passível de causar interferências (…) uma vez que este corpo e a sua ‘organicidade’ são susceptíveis de constituírem significação”.
As pernas nuas, sem meias, sapatos vermelhos de salto fino, atracados ao tornozelo. Na mão um buquê de ixoria e lírios entre outras flores, completando o figurino brincos, colar e anel com mandalas, em outro tom de vermelho. A maquiagem trazia o vermelho vinho marcante nas sombras e nos lábios contrastando um leve dourado iluminando o rosto, emoldurado pelo cabelo grisalho.
Neire hesita para entrar, mas de supetão empurra os portões entra na área da recepção da escola, sobre um caminho com folhas secas de castanholeira que formava um tapete. Um corredor humano se fez.
A Senhora do Tempo ditribui (delicadamente e bruscamente) as flores do buquê entre as pessoas, surpresas. Ainda seguindo sobre o tapete, começa dizer a palavra ‘velha” repetidamente, mudando a entoação e encarando os olhares surpresos. Chegando ao pé da escada, sobe os degraus iluminados por velas em castiçais. Ao chegar ao centro da escada, apoia-se no parapeito, e, novamente, diz a palavra velha, desta vez, sorrindo.
Faz um silêncio súbito e olha para platéia, embaixo, sua figura emoldurada por dois grandes castiçais pousados nas laterais do parapeito. Começa a falar:
Velha!!!
Por fora tenho tantos anos que você nem acredita.
Por dentro, doze ou menos, e me acho mais bonita.
Velha!!!
Por fora, óculos; algumas rugas, prata nos tintos cabelos.
Velha!!!
Por dentro sou dourada, alma imaculada, corpo de modelo.
Velha !!!
Por fora, batem paixões contra o peito.
Paixões por versos,artes e amigos sem despeito.
Não me derrota a tristeza; não me oprime a saudade,nem a maldade
Velha!!
Tantas vidas trago dentro, criança, menina, moleca, mulher e senhora.
Velha!!!
A menina de dentro ilumina a mulher de fora e a mulher se faz senhora.
Senhora de seus anseios, de seus desejos,de seus sonhos, de sua vontade, Senhora do seu tempo”
(O texto usado é um recorte do poema do poeta Luan Jessan com intervenções da performer)
Ao término dessa fala, a performer empunha uma ampulheta enquanto a areia escorre. Mas o tempo da ação acaba por ser marcado pelo público, quando este começa a aplaudir.
Ao final, os comentários eram de que a performance de Neire era um ” tapa” que precisava ser dado, que incentivou muitas mulheres a tomar decisões e a não se sentirem diminuídas por conta da idade.
A cor vermelha predominante no figurino e no cenário é proposital, assimilando o vermelho que está presente no cotidiano. Representa tanto sinais de advertência ou de perigo, o amor, a guerra, o feminino, o masculino, sorte, alegria, criatividade. O manto é o “sagrado”, remete às emoções ocultas, mas também ao poder e à força. Guarda uma verdadeira artilharia de emoções. O espartilho reforça a sensualidade e a delicadeza; e, também o poder, a força, e, ainda, no contexto desta performance, um símbolo da transgressão às imposições socioculturais sobre o corpo feminino. Culturalmente, a morte do espartilho está intimamente ligada à Primeira Guerra Mundial. Com os homens ocupados, lutando na frente de batalha, as mulheres foram convocadas a assumir os trabalhos nos campos, nas cidades e nas fábricas, tornando o seu uso obsoleto.
Para a performer as flores representam o encantamento pela escolha do curso de teatro e a receptividade esperada e, algumas vezes, não recebida. Por isso, nem sempre são distribuídas ao público com delicadeza. Já as folhas secas, representam toda experiência já vivida, os problemas superados. Tornam-se o tapete de sua caminhada/trajetória. Folhas muito secas podem ser queimadas rapidamente, assim como os problemas pequenos, que só se tornam grandes quando nos paralisam pelo medo.
Os castiçais ou candelabros são uma metáfora construída a partir da noção do brilho do guerreiro. Na cultura celta, o “candelabro de valor” é uma expressão que se usa para deignar um guerreiro corajoso. Nesse caso, a guerreira é a Senhora do Tempo. Ela rompe barreiras de “desejos” construídos fora de si mesma..
A performance fortaleceu e empoderou não somente Neire, mas ainda outras mulheres guerreiras em seus cotidianos. O depoimento de Nazaré Gouveia (61 anos) é significativo:”(…) a performance Senhora do Tempo foi transformadora, me mostrou que como mulher da terceira Idade posso tudo. Mudou minha visão sobre ‘eu pessoa’” (GOUVEIA, 2017)
A ampulheta é um antigo instrumento para medir o tempo e também uma expressão para referir as silhuetas do corpo de uma mulher. Na Maçonaria é um símbolo que representa o lento e inexorável escoamento do tempo, recordando concomitantemente a necessidade de agir e a brevidade da existência humana.
O jovem, Marvin Muniz, de 25 anos fala sobre o tempo, medo de envelhecer:
Eu tenho um grande problema de memória e tenho muito problemas com envelhecer e eu acho que quando eu vi a tua performance, esse medo que eu sinto tanto de envelhecer, assim ele meio que se desfez um pouco. Além de eu te ver atriz, ali com aquele corpo com aquela jovialidade, sabe falando para mim de tempo. (MUNIZ, 2017).
Esse trabalho teve repercussão no meio acadêmico da Universidade Federal do Pará e foi convidada a ser apresentar no Fórum de Graduação do Instituto de Ciências Jurídicas, no campus do Guamá. A Senhora do Tempo, nesse espaço também provocou inquietações. No banheiro, enquanto Neire retirava a maquiagem, um grupo de mulheres entrou, entre elas, algumas professoras. Elas relataram ações preconceituosas praticadas por outras colegas mais novas e por alunos em sala de aula, e, mesmo algumas das vezes em que se fizeram de “surdas” diante de algumas frases como, por exemplo, “que essa velha ainda está fazendo aqui?”. Essas mulheres agradeceram à performer por lhes ter levado Senhora do Tempo e por lembrá-las da menina que cada uma tem dentro de si para se iluminar e se fortalecer.
Outra apresentação foi realizada no CONDETUF, também no ano de 2017, no Teatro Universitário Cláudio Barradas. Nesta apresentação, o público, na maioria, era do sexo masculino, mas, revelou ter sofrido o mesmo preconceito ageísta sofrido pelas professoras do ICJ. Foi uma apresentação emocionante, e rendeu a Neire um convite para performar a Senhora do Tempo em um aniversário de 50 anos de uma senhora, como presente de de seu irmão. A performer afirma ter sido muito significativo para ela, enquanto artista pesquisadora, ter o seu trabalho oferecido como presente para alguém e totalmente fora do ambiente acadêmico, em uma festa, uma celebração à vida. Nessa apresentação, lembra ela, a expressão “velha!!” citada várias vezes durante a performance, tomou significado de força, quando no final dos parabéns a aniversariante propôs o brinde erguendo a taça e exclamando em alto e bom som: – Velha!! E todos repetiram erguendo suas taças.
A cada apresentação, o tempo varia com os diferentes espaços que, naturalmente pedirão uma mudança, sem, contudo, sair do foco da performance. Falar do tempo nessa performance, diz Neire, “é difícil, pois ele reverbera na memória e ultrapassa o tempo cronológico, vem de forma diferente, como agora no momento dessa escrita, no mês de junho de 2020, durante a pandemia de covid-19, onde temos tempo tempo de sobra, mas um tempo preso a nós mesmos, como num cilindro, e que mesmo assim transborda.
REFERÊNCIAS
ABRAMOVIC, Marina. Pelas paredes: Memórias de Marina Abramovic:Editora José Olympio, 2017.
BOSI, Ecléa Memória & sociedade: lembrança de velhos. São Paulo, SP. T.A. Editor, 1979.
CASTRO, Tomás N. Um corpo em presença: uma aproximação a Marina Abramović. Philosophica, 42, Lisboa, 2013, pp. 189-198.
SCHECHNER, Richard. Public domain: Essays on the theatre. Indianópolis: Bobs-Merrill, 1968.
Obra maravilhosa, parabéns. O encontro do espetáculo, com a ousadia e o sagrado. Fortíssimo, representa sabiamente todas as mulheres que sofrem com o etarismo diariamente.
Que trabalho lindo!!
Parabéns.
Forte sem perder a beleza e a delicadeza.
Cheio de significados que transbordam de forma poética.
Parabéns.
Bravo! Bravo!Bravo!
Muitos aplausos de pé, querida Neire, “A senhora do tempo”, merece todo o reconhecimento. Trabalho muito bem elaborado e executado de maneira sensível e ao mesmo tempo forte, parabéns pela performance show!
Querida Isa Brito, muito obrigada🎭
Finalmente um projeto que cataloga as performances de nossos artistas, precisamos gerar registros de trabalhos como esse da Neire, um trabalho que merece ser lembrado.
Lennon Bendelak, grata pela sua visita atenciosa.
De fato este projeto é um presente para os artistas, para o público e para a memória artística local.
Sinto-me honrada em fazer parte deste trabalho.
A performance foi excelente ao conseguir externalizar apropriadamente todas as ideias que a inspiraram. Meus parabéns!
Obrigada, Laís Oliveira
Que maravilha, me emocionei lendo e imaginando o efeito que algo assim trás as muitas cabeças tacanhas com as quais convivemos diariamente.
Felicidades e sucesso Neire.
Alessandra, primeiramente gratidão por sua visita.
Sim, infelizmente a idade maior é sempre vista como sinônimo de incapacidade por pessoas como vc disse com mentes tacanhas.
Uma Performance enriquecedora de princípios éticos que envolve uma Demanda que suscita estudo e ações anticolonial.
Vera Solange Pires Gomes de Sousa, agradeço a sua visita.
A Senhora do Tempo realmente traz essa leitura e estimula atitudes que desconstruam formatos .
Grata!
Sucesso sempre maravilhosa
Por nós!!!