Performance de Ana Paula Negrão, André Reis, Diego Leal e Bruno Sousa
Texto de Danielle Cascaes
É possível gordo ser feliz? Pode o gordo andar por aí sem se preocupar com o que estão pensando dele? Gordo pode se sentir bem consigo mesmo, ou é obrigatório sentir-se um problema? Obrigatório ou não, é o que tentam fazer com que o gordo sinta. Parece socialmente inaceitável que um gordo seja feliz do jeito que é, e talvez seja por isso que muita gente parece ter grande prazer em tornar a vida de gordos mais difícil, só por serem gordos.
Este tratamento agressivo direcionado a pessoas gordas é um estigma social conhecido como gordofobia: aversão a pessoas gordas que se efetiva pelo preconceito, intolerância e exclusão de um grupo de pessoas acima do peso considerado socialmente “ideal”. O título Gordosangria é uma referência à palavra gordofobia, um ato praticado por alguém, e gordosangria é a reação que o alvo deste ato tem ao se deparar com ele. Para toda “fobia” de alguém, existe a “sangria” do seu alvo.
A gordofobia gerou feridas profundas nos performers que as utilizaram como matéria prima para a performance Gordosangria, idealizada por Ana Paula Negrão. Mulher, mãe, gorda, paraense, passou a vida martirizando-se pela forma com que seu corpo era percebido pelos outros, até quando era magra. Se achava magra demais, depois gorda demais. Ana Paula foi vítima de diversas violências durante a vida, entre elas a estética, e encontrou na performance uma forma de botar isso para fora. “Quando estava idealizando a minha performance, procurei por algo que não fosse apenas performar por performar. Eu queria mostrar algo de dentro de mim.” NEGRÃO (2020).
Durante sua pesquisa, Ana Paula deparou-se com uma performance realizada pelos ativistas veganos espanhóis do grupo Igualdade Animal, feita para o Dia Mundial Sem Carne. Nela, os performers se puseram seminus em gigantescas bandejas de plástico, parecidas com as que encontramos em supermercados, banhados de sangue e com rótulos que indicavam o seu valor monetário. Apesar de não querer falar sobre ativismo vegano, Ana Paula utilizou a referência do grupo Igualdade Animal para falar de um outro tipo de carne que também é rotulada: a carne gorda.
A performer levou esta referência para alguns colegas de classe, também gordos, que decidiram juntar-se a ela. O grupo formado por Ana Paula Negrão, André Reis, Diego Leal e Bruno Sousa formulou Gordosangria a partir da performance realizada pelo grupo de ativistas veganos, fazendo os ajustes necessários.
Em Gordosangria, os performers não estavam deitados em bandejas de plástico, mas em pé, com plástico cobrindo o seu corpo ensanguentado. Ao invés de valores monetários, os rótulos que vinham grudados em seus corpos apresentavam palavras que constantemente são ditas à pessoas gordas com a intenção de feri-las: “Rolha de poço”, “Preguiçosa”, “Toma vergonha”, “GORDO”. Ao lado dos performers gordos, havia manequins magros, representações de “corpos ideais”. Nestes manequins, os rótulos eram outros: “Linda”, “Perfeita”, “MAGRA”. Ironicamente, o corpo magro do manequim não é real. O gordo é.
A performance aconteceu na rua, na porta de entrada da Escola de Teatro e Dança da UFPA. O local foi escolhido pelos performers com o intuito de alcançar a maior quantidade de pessoas possível. “Dentro da Escola, todo mundo está acostumado com performance, e eu não queria fazer apenas para aquele público. Eu queria fazer para as pessoas da rua, para quem nunca viu performance.” NEGRÃO (2020). A escolha do lugar fez com que a forma com que ele era visto fosse modificada, tornando-o um lugar especial (SCHECHNER apud JANSEN, 2004).
Apesar de estarem superexpostos, os performers mantiveram-se estáticos. Não se moveram, nem falaram nada a quem passava por eles. A imagem que eles formavam era suficiente. Os transeuntes ficavam intrigados pelos performers, aglomeravam-se ao redor deles, aproximavam-se para ler os rótulos e observar os corpos ali expostos. André Reis relata uma situação onde uma senhora se aproximou e ficou muito tempo olhando-o, e ele começou a chorar. Neste caso, o apelo ao público (SCHECHNER apud JANSEN, 2004) não se deu com palavras, e sim com uma espécie de troca de energia entre público e performers, como no caso de André.
Os performers utilizaram suas próprias relações com seus corpos gordos como signos. Eles levavam essas experiências de vida entranhadas em seus corpos. Diego Leal relata que havia uma palavra que o feria mais que as outras, algo que ele ouviu muito durante a vida, pois sempre foi gordo. Homens gordos possuem peitorais maiores, que podem vir a parecer seios. Por conta disso, Diego era constantemente chamado de “tetudo”.
Essa foi a palavra que vinha na minha cabeça o tempo todo durante o processo da performance. Foi um desafio. Você quer mexer, gritar, colocar pra fora, mas você tem que pegar aquela palavra, transformar em indutor e estagnar o corpo. Por isso, eu fiz questão que na minha posição, uma das coisas que ficava mais visível, era o meu tronco, para dar ênfase aos meus peitos. Tentei me cobrir com o sangue falso nas pernas e no rosto, deixando o tronco à mostra. Eu queria que esses peitos volumosos estivessem à mostra, pois é algo natural para homens gordos. Esse foi um indutor, esse trauma que eu carrego comigo. (LEAL, 2020).
O indutor de Bruno Sousa foi a parte do corpo que mais o incomodava: sua barriga. Por isso, a barriga dele foi utilizada no cartaz da performance. Já o indutor de André Reis foi a própria palavra “Gordosangria”, que o remete a uma ferida aberta e cancerígena. Ele usa esta metáfora para explicar que não consegue fechar a ferida que a gordofobia causa, pois ela está sempre inflamando, impedindo-o de transformá-la em uma cicatriz. A performance o ajudou a entender melhor o que lhe causa dor, o que inflama a ferida e o motivo de ela continuar aberta. Agora, ao invés de travar uma batalha contra si mesmo, culpando-se pelos sentimentos de culpa e vergonha por ser gordo, André luta contra o que o levou a sentir-se assim: o preconceito.
Cada indutor utilizado pelos performers transformou-se em algo que os fortalece, dando a performance a qualidade auto assertiva: “Qualidade da performance que estrutura qualidades e valores nos que dela participam, qual seja, afirma o indivíduo em seu fazer performático.” (SCHECHNER apud JANSEN, 2004). Isto é, a performance ajudou os artistas a perceberem os limites e potencialidades de seus corpos, percebendo que o corpo gordo possui uma infinidade de possibilidades e limitações, assim como qualquer outro corpo, gordo ou não. Eles compreendem isso, mas muitas pessoas não. Para muitos, o corpo gordo não é visto como um corpo potente, mas apenas como um corpo limitado e nada mais.
Um costume que muitas pessoas têm (geralmente, pessoas não-gordas) é de relacionar gordura com falta de saúde. Esta equação não é diretamente proporcional, pois uma coisa não depende da outra. A gordura pode afetar a saúde, é claro, assim como a falta dela também afeta. Este costume social de achar que o magro é saudável e o gordo não, faz com que atos gordofóbicos sejam justificados como atos de preocupação com a saúde de gordos, quando muitas vezes, quem critica pouco se importa com a saúde de quem está criticando. O importante é estar acima dos gordos na hierarquia social, perpetuando um comportamento humilhante e destrutivo.
Vale ressaltar que, segundo estudos do Instituto Nacional de Saúde Norte-Americano, distúrbios cardíacos relacionados a obesidade tem um impacto muito maior no sexo masculino do que no sexo feminino. Um estudo com mulheres obesas concluiu que mulheres gordas podem ter vidas mais longas e com mais saúde do que homens obesos. (WOLF, 1992, p. 247). Na verdade, as doenças relacionadas à obesidade em mulheres são mais psicológicas do que físicas, pois mulheres sofrem gordofobia somada ao sexismo, e, esta sim é uma equação diretamente proporcional.
Dito isto, no caso dos performers de Gordosangria, a gordura foi um fator crucial na saúde dos membros do sexo masculino acima de quarenta anos. Após a performance, Bruno Sousa precisou fazer uma dieta rigorosa para melhorar seu quadro de saúde e acabou perdendo 20kg durante o processo. Bruno foi de “obeso” para “acima do peso”, mas continua gordo. Ele afirma que sua perda de peso não está relacionada com a questão estética, mas reconhece que hoje sua imagem o incomoda menos. André Reis tem problema de saúde ocasionados pela obesidade e hoje aguarda pela oportunidade de realizar uma cirurgia bariátrica. Ana Paula também espera pela bariátrica, mas no caso dela, a gordura agravou um quadro de saúde pré-existente, porém não o causou. Já Diego Leal, o único do grupo com menos de vinte e cinco anos, está com a saúde perfeita, mas realiza exames com mais frequência que o normal, temendo um quadro diabético ou hipertenso ocasionado pela obesidade.
Os performers possuem várias formas de lidar com a própria obesidade, entendendo onde ela interfere em suas vidas e de que forma. Eles cuidam de sua saúde e fazem de tudo para melhorá-la, assim como qualquer outra pessoa, gorda ou magra. Porém, o que ainda persiste, é a necessidade de se justificar. Porque ser gordo é se justificar, é pedir desculpas, licença. É preciso estar constantemente provando que se é feliz, que se é saudável, e mesmo assim tem quem duvide. O fato de precisarmos adentrar nos detalhes de saúde de cada performer para falar de seus corpos gordos nos faz perceber que a batalha ainda é longa, pois a gordofobia está intrínseca em cada um, até mesmo neste texto.
Para muitos, parece irreal que pessoas gordas possam estar felizes com o que são. E com este pensamento, estas mesmas pessoas continuam eternizando atitudes gordofóbicas, e são estas atitudes que causam a infelicidade do gordo. São as palavras que estavam presentes em cada rótulo colado nos corpos dos performers, muitas vezes ditas apenas com um olhar, que perpetuam esse sentimento de infelicidade gorda. É ouvir os performers afirmarem que a performance fez com que eles se sentissem muito bem consigo mesmos, e mesmo assim duvidar. Afinal, é possível gordo ser feliz?
Sim. Mas é uma felicidade na constante mira do desdém, da dor e da gordofobia. Enquanto isso, o que nos resta é lutar para que sejamos reconhecidos enquanto indivíduos potentes e plurais, muito mais que nossos corpos, mas levando eles conosco para cada espaço. Vencendo esta luta, a ferida cancerígena se cura, finalmente virando uma cicatriz.
REFERÊNCIAS
JANSEN, Karine. Belém Apaixonada: a construção do corpo devoto nos processos performáticos das Paixões de Cristo em Belém do Pará. 2004. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) – Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, UFBA, 2004.
SCHECHNER, Richard. Public domain: Essays on the theatre. Indianópolis: Bobs-Merrill, 1968.
WOLF, Naomi. O mito da beleza: Como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
NEGRÃO, Ana Paula. Entrevista concedida a Danielle Cascaes em 12.06.2020. Não publicado.
REIS, André. Entrevista concedida a Danielle Cascaes em 12.06.2020. Não publicado.
LEAL, Diego. Entrevista concedida a Danielle Cascaes em 12.06.2020. Não publicado.
SOUSA, Bruno. Entrevista concedida a Danielle Cascaes em 13.06.2020. Não publicado.
Adorei! A performance eno texto pulsam, gritam em nosso ouvido. É assim mesmo que me sinto depois que tive três filhos e passei dos 50 anos. Querem por força que sigamos sempre os padrões de beleza impostos pela sociedade da magreza.