Performance de Cibele Campos
Texto de Larissa Latif
A performance de Cibele Campos, ‘Socorro, Professora!’, se faz na intersecção entre a vida de artista e a vida de professora. Sua inspiração é uma de suas alunas do ensino fundamental. H. tem um comportamento que desafia os educadores e muitas vezes confunde e desagrada os colegas. Cibele se interessa pela história da jovem. A presença dela na escola concretiza o direito universal à educação, mas, ao mesmo tempo mostra o quão urgente é a reinvenção da escola, do modelo de educação formal para incluir e acolher a todos de fato. H. traça seu percurso pela escola como uma linha de fuga, um desvio. Cria laços de afeto com poucos colegas e professores, mas é destemida e desconcertante.
A performance de Cibele reconta o percurso de H. na escola e a relação entre ambas, numa poética que se aproxima da cena teatral, mas permanece inacabada, à espera de cada acontecimento do ato poético para desvelar mais uma camada, mais uma nuance ou descoberta.
Resgatei de minhas lembranças docentes a história de uma aluna, que aconteceu no meu primeiro ano na minha atual escola. Dessa história/memória da jovem de 17 ou 18 anos, destaco a sua relação comigo, com os colegas, sua família e com a sociedade de modo geral, haja vista ser uma adolescente acompanhada pela equipe de Educação Especial da escola e por médicos que buscavam elaborar um laudo definitivo do seu caso. Havia a suspeita de que a jovem sofria de esquizofrenia, além dos problemas familiares por ela vividos, principalmente após a morte de seu pai, além de problemas de relacionamento com sua mãe. (CAMPOS, 2019)
O espaço é uma sala de aula na qual os fragmentos de uma história são os disparadores para a ação da performer, sempre uma reinvenção de um momento da história de H. a cada apresentação. A fragilidade de ambas, aluna e professora, diante de um sistema educacional atravessado pelas opressões estruturais diversas vai aparecendo ao longo da cena que ora é crua, ora docemente poética, às vezes provoca o riso. Uma performance que busca mover o espectador, fazê-lo pensar e afetá-lo, mais que emocioná-lo, comovê-lo, talvez – movê-lo com a performance – convocá-lo a outras formas de agir e pensar no mundo sobre educação, infâncias, adolescências, pessoas com necessidades especiais.
A primeira experiência com a performance aconteceu em uma reunião entre amigos professores e artistas, vários que conheço da minha escola, e outros que são amigos dos meus amigos. Essa performance também foi realizada, em um segundo encontro de amigos, o “Sarau da Resistência Amazônica”, que já ocorreu em sua terceira edição, inclusive nasceu da necessidade dos professores da escola, onde atuo como docente, de resistir ao mal-estar e adoecimento causado por perseguições contra os docentes. (CAMPOS, 2019)
Cibele utiliza poucos elementos na cena, seu principal dispositivo é a habilidade de contar histórias a partir de diferentes pontos de vista, tornando-os, para quem ouve/vê, quase inseparáveis. É no corpo e na voz da artista que os sentidos vão se desenhando à medida que a performance de desenvolve. H. e suas histórias, no corpo e na voz de Cibele, disparam reflexões que nos aproximam da máxima de que o pessoal é político. H. é uma pessoa, uma individualidade única, mas, as normatividades que atravessam a invenção da sua subjetividade ecoam no coletivo.
Uma terceira apresentação aconteceu em uma escola com a qual a artista não tinha nenhuma relação anterior, estimulada pela capacidade de reflexão despertada entre os colegas professores nas experiências anteriores.
Escolhi um canto da sala para colocar um quadro branco pequeno e outros objetos simbólicos do trabalho docente. A intervenção ocorreu com a minha fala como professora e atriz em formação. No decorrer do trabalho performático era possível perceber as expressões sérias, pensativas, de certo modo, incomodadas com aquilo que estavam vendo (…) A coordenadora pedagógica, que era o meu único contato mais próximo para além do espaço escolar, revelou-me depois que uma das profissionais que é professora, mas que não atua na docência naquela escola, exercendo um cargo de gestão, destacou em conversa, o quanto os alunos necessitam de apoio no ambiente escolar, o que permitiu o diálogo sobre a necessidade de apoio profissional também ao docente que convive com situações limites, pois está no centro das atenções do grupo. (CAMPOS, 2019)
As histórias de H. são parte das histórias das escolas brasileiras, das meninas nas escolas brasileiras, das meninas com necessidades especiais nas escolas brasileiras. São também histórias da professora/ artista Cibele, histórias de uma professora numa escola brasileira vividas na interrelação incontornável com as histórias dos estudantes nessa escola e recontadas em ato de performance artística.
Terminamos com as palavras da artista, citando Renato Cohen:
Nessa performance, eu me mostro diante dessa relação tão desafiante para uma professora alfabetizadora. A performance exige do sujeito que propõe a intervenção esse despir-se, segundo Cohen (2002, p. 103): “O atuante à medida que não tem, como no teatro ilusionista, somente a personagem para mostrar, terá também que se mostrar”. (CAMPOS, 2019).
REFERÊNCIAS
CAMPOS, Helane Cibele do Nascimento. Socorro, Professora! Socorro Pra Professora! (comunicação oral) Seminário Poéticas e Oralidades. Soure, 2019.
COHEN, Renato. Performance como linguagem criação de um tempo-espaço de experimentação. São Paulo: Perspectiva, 2002.
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