Carne Corrompida

Carne Corrompida

Performance de Luana Sousa Pereira
Texto de Melquisedeque Matos e Luana Sousa Pereira

A performance carne corrompida de uma certa forma nasceu alguns anos antes de ser apresentada na Escola de Teatro e Dança da UFPA em 2019. Quando nos foi dada a tarefa de criação, procurei dentro de mim algo sobre o que queria contar, algo que eu sabia que me marcava, e com isso, retornei a 2009, quando eu era apenas uma criança no ensino fundamental.

Nunca havia me dado bem com o meu corpo, sempre achava que faltava algo, que partes dele me incomodavam, ou que tinha algo a mais que não deveria estar ali, o que era o caso. Mesmo para alguém em seus 12, 13 anos, meus seios mostravam ser maior do que o da maioria das garotas. Se eu usava uma roupa muito justa, ele marcava na blusa. Se eu corria para jogar bola, ele doía de uma forma absurda. Se eu me deitasse de bruços, uma hora ia ser desconfortável. Eu não me sentia feliz, e muito menos livre.

Eu sempre procurava maneiras de minimizar esse sentimento, para que não fosse óbvio entre brincadeiras feitas pelos meus colegas que eu detestava aquela condição. Não lembro ao certo em que momento ouvi pela primeira vez sobre a cirurgia de redução de seio, mas lembro o quanto eu a almejava. Eu consegui realizá-la em 2015, depois de um longo período, e depois de um longo rastro emocional e físico que aquela situação proporcionou.

Quando escrevi sobre essa performance, me esforcei para retomar as sensações do antes e depois, porque são tempos muito diferentes em minha vida. Queria falar não só sobre a mudança, mas sobre o que eu ia carregar pelo resto da vida além das cicatrizes no meu corpo. Esse momento de mudanças e transformações impulsionaram uma chave de reflexões as quais direcionaram o meu processo.

Uma mente em ação mostra reflexões de toda espécie. É o artista falando com ele mesmo. São diálogos internos: devaneios desejando se tornarem operantes; ideias sendo armazenadas; obras em desenvolvimento; reflexões; desejos dialogando. […] Estamos, assim, diante, de outra instância comunicativa do processo de construção. É o diálogo do artista com ele mesmo, agindo, nesse instante, como o primeiro receptor da obra. (SALLES, 2011, p. 50)

No dia da apresentação da performance, quando estava parada ali, no meio de uma sala cheia de pessoas, queria mostrar que tinha alcançado a liberdade que procurava. Eu nunca havia tirado minha blusa na frente de ninguém antes, nunca havia me exposto tanto para estranhos.

Naquele dia, usei um slide em PowerPoint como recurso visual além do meu próprio corpo. Procurei por fotos de outras cicatrizes, causadas por acidentes, cirurgias por questões médicas e estéticas. Eu decidi juntá-las com o intuito de mostrar que o corpo é um recipiente frágil, que passa por diversas situações, vive vários rituais. Uma cirurgia é, de certa forma, uma transformação, vista por todos pela parte de fora, mas com um peso muito maior por dentro. Daí que busco observar a performance a qual se banha nas minhas memórias, pois “Rituais são memórias em ação, codificadas em ações” (SCHECHNER, 2002, p. 49).

O título Carne Corrompida foi escolhido porque quando um bisturi invade seu corpo ele corta o que estiver na frente. Pele, carne, ele não distingue nada. Essa performance muito além de mostrar uma questão vista por todos como estética, foi feita com o propósito de mostrar que no final do dia o único que precisa amar o seu corpo é você mesmo, e você deve fazer aquilo que acha certo em relação a ele. Eu estaria mentindo se dissesse que hoje eu me amo por completo, mas é sempre um exercício em andamento, o que faz essa performance ser sempre um processo de construção pessoal todos os dias.

No dia da apresentação das performances eu preparei um vídeo com fotos de diversos corpos de mulheres que foram mudados cirurgicamente, e decidi botar a música “Beautiful” da Christina Aguilera de fundo, para acompanhar a montagem. Pedi aos meus colegas para que me ajudassem a escrever a palavra “imperfeição” no meu peito, e depois não sabia muito bem o que fazer com a caneta que usei, então botei atrás da calça que usava. Para verem melhor as cicatrizes da minha cirurgia achei que deveria ficar de braços abertos. Quando a performance começou fiquei no centro da sala com o vídeo passando e na posição que havia escolhido. O intuito era apenas ficar parada até o vídeo terminar, mas encontraram a caneta na parte de trás do meu bolso, e começaram a escrever palavras contrárias à palavra “imperfeição”, então acabou se tornando parte da performance.

A coincidência é um encontro com acaso e nessa situação, mais uma interferência dentro da criação, como um atravessamento que causa reverberâncias, novas redes de conexão. O acaso foi absorvido pelo processo, e utilizado como impulso para novas linhas (SALLES, 2011).

REFERÊNCIAS

RANGEL, Sônia Lucia. Trajeto Criativo. Bahia: Solisluna Editora, 2015.

SALLES, Cecília A. Gesto Inacabado: processo de criação artística. 5 ed. São Paulo: Intermeios, 2011.

SCHECHNER, Richard. Performance Studies: An Introduction. Routledge, 2002. Págs. 45-78

1 Comentário

  1. Cibele Campos

    Que lindo ver seu processo como artista, sempre muito sensível e criativa. Lembro como esse trabalho foi muito marcante para todos que assistiram. Parabéns!

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