Performance de Cristal Pereira
Texto de Raphael Andrade
A pintura renascentista “O Nascimento de Vênus”, datada no século XV, criada pelo artista (atenção ao olhar masculino ao ditar o que é concebido como “ser mulher”) italiano Sandro Botticelli (1445-1510), cuja pretensão, em termos de forma, era uma harmônica composição de uma beleza clássica, em busca de uma perfeição na construção de um arquétipo que reforça a ideia de feminilidade e, conjuntamente, do padrão ideal de beleza idealizado através de séculos.
Se olharmos cronologicamente a história, é possível verificar que o conceito do belo é mutável, subjetivo e depende do contexto social e cultural em que está inserido. Contudo, na contemporaneidade, os conceitos de beleza hegemônica, tais como: corpo alto, magro, sarado, não são muitos diferentes do século XV, a não ser por um fator determinante: os procedimentos estéticos. À vista disso, podemos discorrer do fato que a construção da beleza feminina restringe as singularidades de corpos diferenciados e perpetuam a manutenção das coerções sociais de corpos que ficam à margem da norma do que é tido como belo.
A influência do sistema econômico capitalista sob nossa sociedade reforça os arquétipos e os incorporam na subjetividade dos indivíduos. Além disso, os conceitos envolvidos nesses paradigmas, modelos ou padrões são adotados como referência na interação com o outro, sejam eles presentes na publicidade, nas novelas, sejam até mesmo na narrativa mitológica. Há também muitos estereótipos na literatura, nas artes plásticas e nas demais especificidades artísticas que projetaram/projetam a beleza ideal, os quais não caberiam nesse texto. Contudo, há potências que desestabilizam e colocam em xeque essa análise opressora que encarcera o corpo, sobretudo feminino, como o movimento feminista, que foi (e que sempre será) demasiadamente importante para que se começasse a fissurar a questão da ideologia da beleza imposta às mulheres, sobretudo ao questionar o fato de a mulher ter a sua capacidade avaliada pela sua aparência física e, por vezes, reduzindo-a uma ideologia da beleza que a condiciona a ter um padrão estético considerado socialmente como ideal.
A arte pictórica, como vimos, anteriormente, no exemplo da pintura renascentista de Boticelli, tende a conceituar o que seria o ideal de beleza daquela época, seja pela simetria de corpos, seja pela técnica utilizada, seja por inserir no imaginário social um ideal de beleza e perfeição. Nesse enfoque, atente-se ao tom branco da pele da Vênus, aos cabelos loiros e os olhos claros, conceito de beleza característica do branco-europeu, à la padrão ariano, que ainda vigora nas mentes atormentadas que privilegiam a eugenia como base estética. Partindo de percepção distinta, a Arte também tem o papel de olhar para a diacronia e fazer uma altercação sobre visões axiomáticas que privilegiam certos modos de estar no mundo, como podemos ver na Arte Contemporânea, mormente na especificidade performance, em que traz à tona essa busca incessante pela beleza, para que se possa, através do corpo como suporte, rachar essa ideologia oprimente e, concomitantemente, os interesses mercadológicos, os quais moldam os corpos como eternas pinturas renascentistas.
A título de exemplo, podemos discorrer sobre as performances da artista francesa Orlan que, desde 1964, trabalha com o tema das cirurgias plásticas, com atenção especial ao corpo feminino e as (o)pressões exercidas sobre ele na sociedade ocidental contemporânea. A artista faz vídeos e autorretratos, ao realizar as intervenções cirúrgicas em seu corpo, visando desestabilizar a imagem convencional que, segundo ela, nesse contexto, utiliza o seu próprio corpo como um ato político, como a própria performista explica melhor no excerto:
A Arte Carnal é um trabalho de autorretrato no sentido clássico, mas com meios tecnológicos que são aqueles de seu tempo. Ela [a arte carnal] oscila entre desfiguração e refiguração. Ela [a arte carnal] se inscreve na carne porque nossa época começa a dar a possibilidade. O corpo se torna um “ready-made [1] modificado” porque ele não é mais esse ready-made ideal que é só assinar. A Arte Carnal não se interessa ao resultado plástico final, mas à operação-cirúrgica-performance e ao corpo modificado, tornado lugar de debate público (ORLAN, 2004) [2]
Outro exemplo contundente é da idealização da performance de Cristal Pereira, que traz à tona a crítica social sobre os procedimentos estéticos que são saudáveis ou se tornam uma “compulsão doentia em busca de uma beleza inalcançável e também, por sua vez, uma beleza plastificada que não diz respeito à realidade em que vivemos” (PEREIRA, 2022) [3]. Isto posto, Cristal procura idealizar uma performance que vai de encontro à ditadura da beleza, apesar de estar inserida em um padrão hegemônico Europeu- pois a performer é branca, tem olhos azuis e cabelos loiros- à maneira da Vênus de Boticelli. Para fins de clareza, sua intenção em performar sobre a questão do belo não chega a ser um paradoxo, pois a intenção da artista é mostrar que, até mesmo o padrão aceito na sociedade, busca uma idealização de beleza impossível de ser alcançada. E, assim, a performer apresentou a performance “Vênus Contemporânea”, numa noite de agosto de 2017, entre olhares absortos de corpos dispostos no pátio da Escola de Teatro e Dança da UFPA (ETDUFPA), na prevalência de uma fórmula descortinadora de possibilidades capaz de unir a performance corporal e o som de um violinista na ação. Cristal traz seu corpo marcado por pontos e envolto a ataduras e utilizando muletas que, olhando-o rapidamente, os espectadores tinham dúvidas sobre a sua real intenção, a seguir descrita pela própria:
Primeiro tinha a questão dos pontinhos, os quais remetem aos lugares que precisariam de reparos que, metaforicamente, simbolizando as marcações médicas, que estavam no corpo inteiro, para exacerbar a visualidade. O rosto, com maquiagem bem pesada, já remetendo a vários outros procedimentos estéticos realizados, como: a boca grande, o rosto extremamente marcado e o corpo coberto com ataduras, os quais sinalizavam procedimentos estéticos feitos há pouco tempo, que ainda não foram totalmente cicatrizados. Logo, o meu corpo tinha esses três estágios: os procedimentos, poeticamente falando, que já foram feitos, os que estavam em andamento, que simbolizavam da atadura e as que eu pretendia fazer futuramente, com os pontinhos marcados pelo corpo (PEREIRA 2022).
Na ação performática, a performer mostra com clareza que estava delirando, fitava os espectadores com expressões desconexas, até começar a perfurar (metaforicamente) os seus seios, a sua boca e ao se prostrar perante o público presente– seria a prosternação diante da condição humana frustrada ou da exploração coercitiva que age no seu corpo?
Confesso que, por ter um violinista (Igor Amaro) em cena, as nuances melódicas em prática naquele momento significavam que era um homem comandando e dominando mais uma vez o corpo feminino, pois a performer agia numa espécie de ballet metafórico às ordens dele. Porém, a artista nos revela que, na idealização da performance Vênus Contemporânea: “o violinista era a “vara de um maestro” e indicava para onde a “orquestra” deveria ir (…) e a orquestra era o meu corpo, um instrumento guiado pelo som dele e ele guiado pelos meus gestos de forma recíproca” (PEREIRA 2022), nada tinha a ver, portanto, com o olhar machista, mas nem por isso podemos de deixar de fazer essa analogia.
Voltando à performance Vênus Contemporânea, o corpo da artista que está envolto em ataduras começa, aos poucos, a ficar ensanguentado, mesmo com as muletas ziguezagueando pelos seus braços trêmulos, ela se equilibra em um sapato de salto alto, numa espécie de desfile excêntrico encorpado de futilidade. Ao olharmos para a ação, Cristal utiliza uma seringa que remete aos procedimentos com toxina botulínica, aplicando o líquido no seu rosto, queevidencia uma dúbia inquietação: ora aparenta estar feliz por ser o centro das atenções; ora franze o cenho, mostrando-se insegura diante dos olhares dos presentes, numa espécie de insatisfação de si, por conta da obsessão de um corpo perfeito. Ao fim, no auge da vaidade que a faz alucinar, finda a performance rastejando-se até o banheiro, lugar de lixo, de excrementos. E os espectadores da ação, tomados pelo silêncio da futilidade humana daquele momento, só conseguem aplaudir após alguns segundos da última nota musical do violino.
Na performance, portanto, há muitas nuances que podemos explorar, como as relatadas aqui, as quais não foram, previamente, almejadas na idealização da performance pela artista, mas são passíveis de boas correlações, tais como: o corpo da mulher pela ótica do patriarcado, o capitalismo que lucra sobre a sua imagem, o olhar dominador masculino. Porém, Cristal potencializa essas questões ao trazer o seu corpo como suporte/objeto/discurso, auxiliado por inquietações contemporâneas de exacerbação de cirurgias plásticas que a fez agir, vistas como uma nítida exposição da fragilidade dos limites entre a arte e a vida. E toda ação denunciadora da coercitividade, que incentivam corpos a se mutilarem por um ideal de beleza inexistente, é mais que pertinente, é necessária!
[1] O termo “ready-made” nasce das estratégias de Marcel Duchamp em romper com a artesania da operação artística, uma vez que se trata de apropriar-se de algo que já está feito. Por exemplo, transformar um objeto utilitário em uma obra de arte.
[2] Entrevista para o jornal francês “Le Monde”.
[3] Entrevista concedida para o projeto de extensão “Carga Viva”.
REFERÊNCIAS
ANÉ, C. “Orlan, artiste: “Mon corps est devenu un lieu public de débat” (entrevista) in Le Monde. Disponível em: http://www.lemonde.fr/vous/article/2004/03/22/orlan-artiste-mon-corps-est-devenu-un-lieu-public-de-debat_357850_3238.html. Acesso em: 13/06/2022.
PEREIRA, Cristal. Entrevista concedida a Raphael Andrade em 18.03.2022.
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