Performance de Melquisedeque Miranda
Texto de Raphael Andrade
“O que me atravessa?” – pergunta-se Melquisedeque sobre a performance elaborada por ele, denominada “Carne(ficina)”. Essa indagação, porém, é uma engrenagem que faz com que as (os) performistas ganhem fôlego e potência criadora no processo de sistematizar uma Performance Arte. Essa sistematização parte, principalmente, da subjetividade do artista: rememorando seus medos, anseios, cicatrizes e, sobretudo, explorar quais ferramentas serão usadas para mudar o que é socialmente posto como axiomático. Dessa forma, as ações performáticas realizadas na disciplina Performance do Curso de Licenciatura em Teatro da UFPA, ministrada pela Prof. Dra. Karine Jansen, apresentam potentemente o uso do corpo na encarnação de um ato criativo e, por conseguinte, no entender a ação corpórea como “um lugar de debate público” (ORLAN, 1998, p. 95). O debate público, como bem refere Orlan, é atravessado pela encarnação das ideias e a presença do corpo-performer ganha uma potência sem precedentes ao realizar a ação performática, principalmente, na urbe.
Essa força é capaz de criar uma disputa semiótica, que desorienta o campo possível da rua, provoca narrativas não hegemônicas, altera a paisagem urbana e o modo de como se deve estar nesse local. Um exemplo dessa premissa é a ação corpórea de Melquisedeque, que traz para o ato performático um corpo não cotidiano, com uma partitura corporal disforme e o seu rosto negro empoeirado pela cor acromática branca, que remete a ideologia do embranquecimento de negros e negras, desvelando, assim, uma composição corpórea-espacial efêmera, que deixa marcas simbólicas no espaço-tempo e nos transeuntes que veem a performance.
Na performance supracitada, a atenção é voltada para o próprio corpo do performista, em que pode ser analisada por uma perspectiva artivista[1], pois, age de forma correlata às vivências e às mazelas acometidas do corpo negro. À vista disso, Melquisedeque cria objetos, modos de fissurar a hegemonia (e eugenia) opressora branca, principalmente, por meio das composições gestuais representacionais dessas opressões, como o próprio artista narra:
A performance se constitui com o meu corpo amarrado, “espremido” com fitas vermelhas, as quais representam as opressões que sufocam o corpo negro, a respiração com o intuito de me circunscrever nessas barreiras impostas. Essa fita, traz uma imagem de recortes, como se o meu corpo fosse marcado para se desmembrar e, assim, poder me reduzir aos espaços impostos. Somado a isso, tem-se a bacia verde que tem como significado esse discurso maquiado influenciador, o qual vende essa padronização estética e de vida. Infelizmente, muitos dos meus compram essa falácia para se enquadrar nessa coercitividade e reproduzem esse racismo. E, por fim, a própria poeira branca, a qual embranquece, incomoda, cega. Essa poeira é o apagamento, a desfiguração do indivíduo, o esquecimento da memória. (MIRANDA, 2022)
Nesse prisma, o artista utiliza da arte performática corpórea para desconstruir estereótipos e arquétipos que visam modificar a estrutura racista e, como consequência, colocar em risco o fluxo da supremacia das instâncias de poder (vale lembrar que o racismo é um sistema de poder), especialmente, ao estar na rua, local em que os fluxos de agenciamentos de poder são intensificados.
Na urbe, o performer aciona as bombas visuais do corpo que é mais perseguido, torturado e massacrado por essas terras tupiniquins. Em que outros corpos os veem como uma “pedra que incomoda no caminho”, como dizia Carlos Drummond de Andrade ou a carne que já foi (foi?) vista como a mais barata e que, até hoje, tem-se resquícios de trabalhos análogos à escravidão, como denunciava a composição de Seu Jorge, Ulises Capeletti e Marcelo Nascimento. No país como o Brasil, colonizado de forma violenta, as marcas da escravatura não cessaram, não precisamos nem de dados científicos para sabermos disso, pois basta olharmos o preconceito violento do cotidiano.
Para fissurar essa estrutura desigual, Melquisedeque revela os signos presentes e os códigos estabelecidos em seu corpo, ao apontar sua carne negra como uma operadora de transformações sociais, intensificadora de reafirmação das identidades e fortalecedora de grupos minorizados. Escrito de outra maneira, o performista inscreve o mundo no próprio corpo e reestabelece a sua vontade política de um corpo que sempre foi tolhido e disciplinado de forma violenta pela ótica do embranquecimento, em que o padrão, bem sabemos, ainda é eurocêntrico.
Ao recuperar as suas memórias subjetivas codificadas no ato performático, o performer mencionado as torna uma dinamite dissidente codificada que intenta, taticamente, alertar e modificar subjetividades outras e instiga a seguinte análise:
Performances são materializações, no corpo, das insatisfações e reflexões acerca do nosso entorno, inquietações suficientes fortes, que nos impelem à ação. Às performances se abastecem das ações diárias, cotidiana, são inseparáveis da vida ordinária e comum. As performances desconhecem os limites entre arte e vida (CASTANHEIRA, 2014, p. 146).
Ao estabelecer a performance como ação reflexiva numa linha tênue entre arte e vida, além de encarar a ação performática de forma dissidente, mesmo que de maneira temporária, o autor da performance consegue desordenar o controle de seu corpo e abalar as estruturas da sociedade de controle.
É perceptível, portanto, que a performance arte engendra modos de existência, além de configurar escolhas possíveis para fluir a existência de corpos que não são dóceis- à maneira de Foucault. E realizar performance dissidente é restituir a vontade de ação política.
Finaliza-se essa exposição com as palavras do próprio artista que sintetiza, de maneira potente e precisa, o porquê de realizar o ato performático “Carne(ficina)”: “Todas às vezes que faço essa performance, penso a quão delicada é a linha entre rememorar e esquecer. E compreendo que essa performance existe porque as tentativas de nos apagar é o que nos traz de volta à tona”. (MIRANDA, 2022).
NOTAS
[1] Em síntese, artivista é a (o) artista que faz da sua arte uma forma de ativismo político.
REFERÊNCIAS
CASTANHEIRA, Ludmila. Performance Arte: modos e existência. 1. Ed. Curitiba: Appris, 2018.
MIRANDA, Melquisedeque. Memorial da performance “Carne(ficina)”. No prelo.
ORLAN. Surtout pas sage comme une image…Tradução nossa. Quasimodo – Art à contre-corps. Montpellier, n. 5, printemps, 1998.
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